Em todo o Brasil, e também em meio às montanhas de Minas Gerais, há comunidades que guardam suas terras, casas e hábitos cotidianos, além das vozes e das cores da cultura afro-brasileira. São os quilombos, lugares de memória, de resistência e de criação, onde os descendentes dos escravizados africanos mantêm vivas as tradições, os saberes e as manifestações artísticas de seus ancestrais. Originalmente formadas por grupos que, resistindo à opressão, se refugiaram em territórios próprios, onde desenvolveram formas de vida coletivas, baseadas na agricultura familiar, no artesanato, na pesca e na religiosidade, muitas dessas comunidades, que existem desde o período colonial até hoje, são consideradas, atualmente, patrimônio brasileiro, pois preservam e transmitem as tradições, os saberes e as manifestações artísticas de seus ancestrais, contribuindo para a riqueza da nossa cultura, formada por uma grande diversidade étnica e cultural, tendo na matriz africana uma de suas fontes fundamentais.
Atrás apenas da Bahia e do Maranhão, ambos na região Nordeste, o território mineiro, aliás, é o terceiro com maior número de quilombolas no país, abrigando 135.310 pessoas que vivem em comunidades formadas exclusivamente por descendentes de ex-escravizados, conforme dados do Censo de 2022 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ainda segundo o levantamento, oficialmente, cerca de 365 quilombos no Estado são reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares, sendo que 18 já receberam titulação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mas esse número pode ser bem maior. É o que indica um relatório do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes), que, atualizado pela última vez em junho de 2021, contabilizava 1.043 comunidades negras e quilombolas em Minas Gerais.
Um desses tantos territórios de resistência, guarda e preservação de memórias, costumes e tradições, que ilustra essa potência cultural afro-brasileira, é o Quilombo dos Marinhos, localizado em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. “Eu nasci e fui criada nessa comunidade, que, embora tenha sido reconhecida com esse nome só mais recentemente, surgiu há muitos anos”, explica Maria de Fátima Santana Silva, 62, uma das lideranças locais. Ela detalha que, antes, a comunidade integrava um grupo maior, chamado “Sapé”, mas, depois da construção de uma linha férrea na região, acabou se separando e ganhando a nova denominação em função do nome de uma das estações.
“Aqui, em Brumadinho, temos quatro comunidades reconhecidas. A primeira é justamente a de Sapé. Depois vieram a nossa, a de Rodrigues e a de Ribeirão, que conquistaram reconhecimento na mesma época”, lembra, assinalando que a sua estreita relação com a terra onde nasceu e cresceu. “Eu amo esse lugar, que carrega a nossa história, a nossa identidade”, diz. Maria de Fátima relata que, entre os tantos desafios que enfrenta no dia a dia, o principal é a resistência de algumas pessoas em aceitar a regularização das terras quilombolas – um direito garantido pela Constituição Federal de 1988. “Nós queremos que todo mundo respeite os nossos direitos e a nossa cultura”, clama, destacando que a dificuldade de acesso à saúde e à educação é um problema comum a muitas comunidades quilombolas no Brasil.
A fim de preservar e transmitir as suas tradições, a liderança quilombola Maria de Fátima Santana Silva enumera uma série de ações, incluindo a realização de festas e celebrações religiosas, a organização de grupos de dança e música, além de outras iniciativas visando ensinar as suas crianças sobre a sua história e a sua cultura – “elas participam com a gente de tudo, desde que estão na nossa barriga”, diz.
“Temos várias festividades ao longo do ano, mas a principal é a de Trono Coroado, uma festa de reinado, que homenageia os nossos santos protetores, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário”, comenta. Nessas ocasiões, tradicionalmente, há apresentações das guardas de Congo e de Moçambique de Marinhos e Sapé, formadas por grupos de dança, música, canto e devoção, que usam roupas coloridas, chapéus enfeitados, fitas, espadas, bastões e instrumentos de percussão. “A nossa Guarda de Moçambique, por exemplo, é centenária. Tenho, inclusive, uma ata em minha posse que comprova isso, tendo mais de 100 anos”, situa.
Ela lista ainda outras manifestações artísticas e culturais realizadas na comunidade, como o grupo de roça “Quem Planta e Cria Tem Alegria”, que faz trabalhos coletivos na agricultura familiar, e uma gastronomia pautada pela produção de pratos típicos, carregados de história, memória e significado. “Também temos o grupo de dança de peneira, uma dança típica da nossa região, que celebra a colheita”, aponta. Por fim, ela cita o artesanato têxtil, realizado pelas mulheres da comunidade, que usam tecidos coloridos para criar itens como as bonecas de pano.
Maria de Fátima Santana Silva observa que, fortalecidas por um senso de coletividade apurado, as comunidades quilombolas compreendem que a tradição, ao contrário de algo estagnado, se faz presente e sobrevive à medida que se permite transformar. Ela comenta que, hoje, a comunidade dos Marinhos, assim como as de Sapé, Rodrigues e Ribeirão, integra o catálogo Céu de Montanhas, uma publicação da Vale e do Instituto Rede Terra, com curadoria do designer mineiro Ronaldo Fraga, que reúne 40 experiências turísticas inéditas, em uma viagem às cores, sabores, música e tradições de Brumadinho.
O catálogo é resultado de um amplo trabalho de mapeamento, assessoramento técnico e sistematização da oferta de turismo de experiências na região, realizado desde 2021 por uma equipe composta por especialistas nas áreas de gastronomia, vivências turísticas e design têxtil. No caso dos quilombos, cada um deles oferece uma experiência única e autêntica aos visitantes, que podem conhecer de perto a história e a cultura dessas comunidades, além de experimentar pratos típicos. Os interessados em participar das vivências devem entrar em contato com cinco dias de antecedência pelo site ceudemontanhas.com.br.