Quando era criança, Titane, como todas as outras, à noite punha a cabeça no travesseiro para dormir, mas algo de diferente acontecia. Do lado de fora, outro mundo invadia seu quarto, levando o coração a bater no compasso de 6 por 8, no toque serra-abaixo da Guarda de Moçambique de São Benedito, despertando na garota medo e encantamento, numa mistura que, inevitavelmente, a arrebatava.
“Me sinto filha de um conflito e acho que esse é um pressuposto de todos nós, brasileiros, que nascemos dentro de uma sociedade escravocrata”, aponta a cantora que, nesta quinta (14), participa das celebrações de 35 anos do BDMG Cultural, numa programação que inclui música e artes plásticas, como uma das protagonistas do concerto “Sons de Uma História: Tambores e Vozes”.
Encontro
Dedicado à tradição do congado, o repertório congrega no palco as interpretações de Maurício Tizumba, Titane, Sérgio Pererê, Raquel Coutinho e Sérgio Santos, também responsável pelos arranjos criados especialmente para a ocasião.
Eles serão acompanhados por músicos que venceram o renomado prêmio BDMG Instrumental, que atualmente gozam de prestígio junto ao público e à crítica especializada, como as irmãs Luísa e Natália Mitre, respectivamente pianista e percussionista, a flautista Marcela Nunes, a contrabaixista Camila Rocha e o saxofonista Breno Mendonça, dentre outros.
A seleção das canções aconteceu coletivamente, priorizando um “diálogo direto com os tambores do reinado”, salienta Titane. O espetáculo ainda traz as participações da Guarda de Congo Feminino de Nossa Senhora do Rosário do bairro Aparecida, que, neste ano, completa meio século de atividade, e da Guarda de Moçambique, representando a Irmandade do Rosário dos Ciriacos.
Feminina
“São duas guardas que abriram um caminho importante para as mulheres no reinado”, destaca Titane. A presença feminina, aliás, é tema da mostra “Não Sou Idêntica a Mim Mesma: Mulheres no Acervo do BDMG Cultural”, com estreia prevista para esta sexta (15).
“Me sinto bem no meio de tantas mulheres, me traz um alívio e uma leveza que é diferente do momento que comecei a cantar, nos anos 1980, quando éramos poucas e praticamente todas atuando somente na condição de intérprete. A cada geração temos mais mulheres desempenhando variadas funções no universo musical: arranjadoras, compositoras, instrumentistas, cantoras. Tudo muito vivo e pulsante. A arte é sempre assim”, afiança Titane.
Raiz
Maurício Tizumba nasceu em meio aos tambores. “A minha recordação mais antiga de música é nos terreiros de congado e candomblé, onde a gente cantava e tocava durante as nossas manifestações, e era muito forte e bonito. Quando criança, eu já tinha dentro de mim essa coisa de juntar os cânticos da umbanda, do congado, do candomblé”, relata. A mistura de linguagens é outra premissa que conduziu a carreira do artista.
“Sempre tive essa formação de cultura popular e ela é tudo isso, bem antes. Quando você participa do congado tem dança, figurino, cenário. Alguém disse que toda arte que a gente desenvolve hoje vem da religião. O que se esculpe, o que se toca, o que se canta, o que se dança, o que se fala, o que se pinta, o que se costura, toda arte. E ainda teimam em dizer que vem do grego. Não, ela vem do negro, na África, Mãe de tudo”, garante.
Desde 2002, Tizumba está à frente do Tambor Mineiro, festejo que se tornou referência no Estado. “Estou envolvido com o congado praticamente desde a raiz. Quando se fala na permanência dessa manifestação, te confesso que a única coisa que me passa pela cabeça é a força que o povo preto tem e a fé no rosário. Porque o congado ainda é muito desconhecido pelo preconceito que impera nesse país racista”, constata. Sem vergar diante das dificuldades, Tizumba proclama novamente o caráter “vitorioso do congadeiro graças à fé no rosário”.
Luta
Ele e Titane se conheceram quando ambos iniciavam carreira e davam a cara a tapa em movimentos grevistas que tomavam as portas de fábricas, no contexto de uma abertura política após duas décadas de ditadura, “cantando, tocando e contribuindo para uma melhor condição de vida do povo trabalhador, juntos na certeza de que a arte pode mudar o mundo”, salienta Tizumba.
“Faço parte de uma geração que começou a se aprofundar nessa questão de pensar e viver o encontro da nossa arte com a nossa ancestralidade”, complementa Titane. Natural de Oliveira, região Oeste de Minas Gerais, ela se orgulha de ter nascido em “uma cidade reinadeira”.
“Não nasci dentro do reinado, coloquei uma farda pela primeira vez aos 20 anos, no Catupé de Nossa Senhora do Rosário da rua da Preguiça, mas fui sempre muito envolvida por essa atmosfera. É impossível para qualquer morador da cidade não ser tocado, de alguma maneira, pela fé. Sou muito grata aos homens pretos e às mulheres pretas que mantém viva essa maneira de compreender as relações sociais e a natureza”, destaca Titane, que retoma uma questão levantada por Tizumba: a do enfrentamento à discriminação cultural e religiosa.
“Parte da minha família vive no universo da cultura afro-brasileira, enquanto a outra está imersa em uma religiosidade de matriz católica europeia. Isso para falar com suavidade sobre uma questão muito séria e difícil, que tem a ver com uma cultura cruel que se construiu sobre uma sociedade escravocrata”, arremata.
Serviço.
O quê. Espetáculo “Sons de Uma História: Tambores e Vozes”
Quando. Nesta quinta (14), às 20h
Onde. Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, Centro)
Quanto. Gratuito com retirada de ingressos na bilheteria ou pelo site www.fcs.mg.gov.br