O que são os livros apócrifos?

São aqueles excluídos da Bíblia. A Bíblia Apócrifa é composta por cinco evangelhos sobre o nascimento e a infância de Jesus, seis sobre Maria, um de São José, o Carpinteiro, cinco da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, seis gnósticos (antiga doutrina religiosa que considerava que o conhecimento era a chave para a salvação) – entre eles, o de Maria Madalena –, oito histórias de Pilatos, 14 Atos dos Apóstolos, 18 cartas e quatro Apocalipses. Esses textos oferecem uma catequese dos primeiros cristãos e influenciaram muito, por exemplo, a literatura na Idade Média.

O que o motivou a fazer as traduções dos livros apócrifos?

Tenho doutorado em literatura apócrifa e há mais de 20 anos venho publicando sobre essa literatura. Nos últimos dez anos, ao traduzir esses textos – evangelhos, cartas, atos e epístolas –, vi a possibilidade de oferecer ao público brasileiro uma edição que reunisse todos esses escritos em um único volume. O título do livro se justifica, pois, “bíblia” vem do grego “biblos”, ou seja, “biblioteca”.

Como a obra é dividida?

Na primeira parte do livro eu explico por que alguns textos são considerados inspirados e outros, não, e os motivos pelos quais eles foram ou não incluídos na Bíblia tradicional. Depois, começamos a tradução, que foi feita por blocos. Quis proporcionar mais clareza na compreensão desses textos. Fizemos a tradução de 67 livros e comentários sobre outros 38. Comecei com os evangelhos da infância de Jesus e com oito evangelhos que contam a história de Maria. Há ainda o evangelho de José, que aborda a paixão, morte e ressurreição de Jesus, e os evangelhos gnósticos, como os de Maria Madalena, Tomé e Filipe.

O que fez com que tais livros não fossem incluídos na Bíblia?

Na Igreja, ao longo dos séculos, houve uma tentativa – iniciada pelos judeus –, já entre os anos 95 e 105 d.C, de definir quais seriam os livros considerados inspirados. Para os cristãos, esse processo começou por volta do ano 150, houve nova tentativa no ano 200 e outra em 393, buscando estabelecer quais livros a Igreja deveria aceitar como inspirados. Esse processo teve outros desdobramentos ao longo do tempo. Os critérios foram sendo estabelecidos gradualmente: um livro precisava ter uma tradição ligada a um apóstolo ou a uma comunidade cristã reconhecida; além disso, precisava ser lido em várias comunidades. Após muitas discussões, os livros foram sendo delimitados. No entanto, se algum não estivesse de acordo com a identidade cristã, não era incluído. Um exemplo seria um texto que negasse a ressurreição de Jesus. O evangelho de Filipe, por exemplo, afirma: “Se vocês pensam que Jesus morreu e ressuscitou, vocês estão completamente enganados. Primeiro ele ressuscitou, depois morreu”.

Qual o conteúdo dos evangelhos apócrifos?

O evangelho da infância do Menino Jesus o apresenta com características gnósticas. Esses textos mostram Jesus indo à escola e sabendo muito mais do que os professores. Ou seja, ele já é dotado de conhecimento desde a infância. Nos evangelhos canônicos, ou oficiais, Jesus começa sua atuação apenas aos 30 anos. Os textos também falam sobre Maria. É válido destacar que a tradição mariana é muito mais influenciada pelos textos apócrifos do que pelos canônicos. As traduções mencionam a coroação de Nossa Senhora, sua morte e assunção – temas que não estão presentes nos textos oficiais. Há ainda os textos de oposição. Um exemplo é o evangelho de Maria Madalena, que apresenta uma visão diferente da que se tornou hegemônica. Nessa obra, Maria Madalena é retratada como uma mulher com proeminência, uma líder que transmite os ensinamentos de Jesus. Ela afirma, por exemplo, que o pecado não existe – somos nós que nos tornamos pecadores quando nos desviamos do caminho –, entre outras ideias.

O que mais o Evangelho de Maria Madalena transmite?

É um texto do ano 150, descoberto por um camponês. Ele não possui as primeiras páginas, pois, segundo a tradução, o rapaz chegou em casa, brigou com a esposa, e ela jogou um pedaço do papiro no fogo. Ele representa o pensamento da corrente gnóstica, que afirma que viemos da plenitude e para lá retornaremos. O texto começa assim: “O que é a matéria? Ela durará para sempre?” O mestre responde: “Tudo o que nasceu, tudo o que foi criado e todos os elementos da natureza estão estreitamente ligados e unidos entre si. Tudo retornará às suas raízes”. O evangelho afirma ainda que não há pecado por si só, mas que somos nós que o fazemos existir com nossas condutas.

E sobre a relação entre Jesus e Maria Madalena?

Um trecho do evangelho traz um diálogo entre Maria Madalena e Pedro. Ele diz: “Irmã, nós sabemos que o Salvador te amou diferentemente das outras mulheres e que foste muito amada por ele. Diz-nos as palavras que ele te disse, das quais tu te lembras e nós não tivemos conhecimento e não ouvimos”. Veja que interessante: esse evangelho, assim como o de Filipe, afirma que Maria Madalena era a amada de Cristo, a mulher mais próxima de Jesus. O evangelho de Filipe, inclusive, afirma que Jesus a amava e a beijava frequentemente na boca. O beijo, nesse contexto, tem o significado simbólico de transmitir saber e conhecimento. É um texto muito interessante, que revela esse lado mais humano de Jesus.

Como resumiria os valores dos apócrifos?

Eles resgatam as faces dos cristãos perdidos ou excluídos e possibilitam o conhecimento de correntes e pensamentos que foram condenados ao esquecimento, mas que revelam traços importantes de Jesus. Esses textos também expõem a luta desenfreada pelo poder nos primórdios do cristianismo, especialmente entre suas lideranças. Além disso, oferecem elementos da catequese dos primeiros cristãos que chegaram até nós, ajudando a responder questões que antes permaneciam sem esclarecimento.

O senhor teme represálias pelo livro?

Sempre enfrentei oposição. Mas a grande novidade agora é que uma editora católica está publicando essa tradução. Os conservadores, muitas vezes, não gostam disso. Mas não podemos deixar de oferecer ao grande público a possibilidade de ter contato com esses textos e de resgatar essa literatura que ficou escondida. Precisamos aprender a dialogar com esses escritos e ouvir as vozes que foram abafadas. Eles têm exageros? Têm. Mas os textos canônicos também têm, como, por exemplo, quando dizem que Jesus andou sobre o mar. Nos apócrifos, encontramos também uma dimensão da fé.

Serviço

“Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento”

Frei Jacir de Freitas

Editora Vozes

784 páginas

R$ 200