Paixão desde a adolescência, a arte de malabares, que, por anos, foi o principal ganha-pão do argentino Diego Gamarra, se confunde com a maneira como o circense encara a vida. “Nem sempre temos experiências boas. Já fui furtado por pessoas que acolhi na minha casa, tive trabalho com alguns que bebiam demais. Mas, se colocar na balança, o que acontece de bom compensa o que acontece de ruim, e a vida encontra seu equilíbrio”, diz a certa altura, após narrar os errantes caminhos que o trouxeram a Belo Horizonte, onde se estabeleceu há duas décadas, depois de uma turnê de cinco anos por países da América Latina.

 

 

Diego Gamarra

 

O comentário com um quê de existencial, o inquieto artista, nascido e criado em Rosário dispara de maneira quase irrefletida, sem sequer se dar conta de como esse pensamento se confunde com o equilibrismo, uma das artes circenses que ele domina – outras, aliás, vão aparecer na conversa, mesmo que de forma cifrada, como quando Diego explica o porquê de ter escolhido fincar raízes na capital mineira. 

 

“Há uma série de coincidências que tornam a cidade acolhedora para mim. Para começar, o último lugar que morei no meu país foi Córdoba, que tem uma geografia parecida com a daqui. Além disso, encontrei na cidade algo semelhante ao que encontrava na minha cidade natal, uma terra que, mesmo sendo mais cosmopolita, preserva um jeito interiorano”, compara, como quem narra um espetáculo de ilusionismo em que cartas muito parecidas são trocadas, causando a sensação de ser uma só.

 

 

Casa Circo Gamarra

 

Com uma biografia pautada pelo circo, Diego nunca abandonou o picadeiro, mas, ao longo dos últimos 17 anos, tratou de construir sua Casa Circo Gamarra, que funciona, digamos, uma rede de proteção para o caso de uma eventual queda da “corda bamba” – como ele, por vezes, chama as travessias de sua própria vida. Essa preocupação em ter alguma segurança em um lugar de pouso surgiu nele pelo chamado da paternidade. “Em 2007, eu tive a notícia de que ia ter um filho, o Juan, então quis ter um espaço próprio”, justifica, lembrando que o desafio que se impunha não era pequeno, afinal, sem familiares na cidade, ele sequer conseguia avalistas para alugar um imóvel. “Foi quando vi um lote que estava à venda. Falei com meu então sogro, explicando que queria ter aqui um porto seguro. Ele me emprestou o dinheiro, e eu comecei a fazer a obra”, comenta, mencionando ter terminado de quitar a dívida no ano passado. 


 

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Logo, contudo, o lugar passou a ser mais que um porto seguro para a família Gamarra. Em um movimento de simbiose com a trajetória de seu criador, a casa foi se constituindo como uma rara experiência anárquica – no melhor sentido do termo –, oferecendo hospedagem solidária para outros artistas, na maioria latinos, além de cursos e festas. “Passam, em média, cem viajantes por ano. Alguns passam várias vezes, subindo ou descendo em turnê pelo país”, contabiliza, indicando que, nesse “ir e vir”, o espaço geralmente reúne 15 residentes.

 

 

Casa Gamarra

 

Hoje, o imóvel, erguido pelo método da autoconstrução, com o próprio Diego colocando a mão na massa, soma cerca de 500 m² construídos, totalizando quatro andares, onde estão distribuídos 25 quartos e dez banheiros, e um terraço. No coração do prédio, fica o picadeiro, com seu amplo vão de pé-direito alto e piso em madeira, para amortecer as quedas dos acrobatas nos seus ensaios e apresentações. A fachada colorida, claro, rouba a atenção de quem circula pela rua Conselheiro Rocha, na Vila Dias, zona Leste de Belo Horizonte.

 

 

Para se hospedar no local, Diego pede uma contribuição de R$ 25 por dia ou R$ 150 por semana. “E todas as pessoas têm que contribuir com a manutenção da limpeza e a organização, já que não somos um hotel ou hostel, mas uma casa onde todos os moradores precisam conviver e fazer sua parte”, diz, salientando que o visitante fica isento de fazer tal contribuição se realizar benfeitorias no lugar.

 

 

Casa Circo Gamarra

 

Um trabalho constante

 

O artista explica que foi erguendo o edifício aos pouquinhos, recorrendo a conhecimentos que acumulou ainda na infância e adolescência, quando trabalhou como marceneiro e prestando serviços de manutenção em casas da sua vizinhança, em Rosário. “Com paciência, fui reunindo o material, inclusive de reúso, como uma formiguinha, em um trabalho constante”, detalha, mencionando que, além de moradia, a edificação tem espaço para realização de atividades culturais e de coworking. Ele ainda lembra que foi só há sete anos, celebrados com uma festa no último sábado de março, que o espaço ganhou “nome e sobrenome”.

 

 

A inauguração, com nome e tudo, foi com o Cabaré Ressurreição, que homenageia o circense colombiano Emerson Noise, que, após um acidente, estava voltando aos picadeiros. “Naquele momento, precisávamos batizar o lugar. E eu quis que tivesse a palavra ‘circo’, pelo meu ofício, e ‘casa’, pelo meu filho. Então ficou assim: ‘Casa Circo Gamarra’”, conta.

 

 

Casa Circo Gamarra

 

Diego se orgulha de oferecer, além de moradia, espaço para realização de programas culturais e coworking. “Quando chega um tatuador ou massagista, há espaço para que eles trabalhem. Se chega alguém em um motorhome e precisa de reparo, temos maquinário. Se vier um cozinheiro, temos uma cozinha industrial. Se for costureiro, tem máquina de costura”, orgulha-se. “Também oferecemos oficinas, sejam elas avulsas ou contínuas, algumas com duração de cerca de três meses. E há apresentações uma vez por mês, quando fazemos uma festança que mobiliza a casa inteira”, complementa.

 

 

Casa Circo Gamarra

 

O leque amplo de possibilidades dialoga com a vasta experiência do argentino como artista itinerante. “Às vezes, eu queria passar um texto, mas sabia que, sem um lugar adequado, estaria importunando quem estava me acolhendo. Se eu quisesse fazer um prato típico da minha terra, sabia que isso poderia gerar muita bagunça, espalhando farinha para lá e para cá, e isso seria incômodo…”, reflete, lembrando de seus anos de estrada.