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Foto: (Quem é Diego Gamarra, que ergueu casa para artistas itinerantes em BH / Reprodução)

Diego Gamarra no interior da sua Casa Circo

Quem é Diego Gamarra, que ergueu casa para artistas itinerantes em BH

Circense com trajetória nômade agora se dedica a receber colegas de ofício que também fazem suas vidas na estrada

Por Alex Bessas Publicado em 12 de abril de 2024 | 09h30

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Há sete anos, celebrados no fim do mês passado, o circense argentino Diego Gamarra mantém, em Belo Horizonte, a sua Casa Circo Gamarra, um espaço híbrido que combina moradia familiar e hospedagem solidária para artistas itinerantes, além de receber festas e oficinas artísticas. A edificação, erguida ao longo dos últimos 17 anos, soma quatro pavimentos e terraço em cerca de 500 m² de área construída que, com uma fachada colorida, rouba a atenção de quem circula pela rua Conselheiro Rocha, na Vila Dias, Zona Leste da capital mineira.

 

Diego Gamarra

 

Inicialmente, é verdade, o projeto surgiu como um chamado da paternidade. “Em 2007, eu tive a notícia de que ia ter um filho, o Juan, então, quis ter um espaço próprio”, lembra Diego, pontuando que, em um movimento de simbiose com a sua própria trajetória, a casa ganhando novas funções e se abrindo para um amplo leque de possibilidades, que dialoga com a vasta experiência do argentino como artista em trânsito – sem lenço, nem documento.

 

Na história dele, aliás, essa vocação para o nomadismo surge empurrada pela timidez e, obviamente, pelo amor ao circo. “Sou filho único e morava com minha mãe. Desde os 10 anos já trabalhava fazendo serviços de marcenaria, pequenos reparos em casas de senhorinhas. Por isso, com 15 anos, eu já tinha minha caixa de ferramentas e uma certa emancipação econômica, o que me possibilitou pensar em pegar a estrada e ir para outra cidadezinha do interior para sair da toca e me testar, para ver se eu teria plateia ou não”, menciona, dizendo que, naquele momento, ainda não se sentia confiante para se apresentar na cidade em que vivia – “eu tinha vergonha, porque conhecia as pessoas”, justifica, ponderando que Rosário, maior cidade da província de Santa Fé, na região central da Argentina, é uma cidade cosmopolita, que abriga muitos artistas. Apesar disso, ele próprio não cresceu em um ambiente familiarizado com o universo das artes.

 

Casa Circo Gamarra

 

“Nasci no ano de 1978 e vivi parte da infância em uma época em que, na Argentina, assim como no Brasil, estávamos sob uma ditadura militar, com muitas restrições e, mais que a perseguição, o estímulo à perseguição”, analisa, defendendo que os valores e práticas típicas desse contexto macro se infiltrassem e influenciassem as dinâmicas microssociais. “Embora hoje ainda exista, na época sinto que o bullying era mais forte, se impunha mais. E eu era um alvo fácil, porque era magrinho, alto, bocudo, orelhudo, não tinha sucesso com as meninas, era tímido e ruim nos esportes”, comenta.


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Vivendo uma adolescência turbulenta, em que se sentia à parte, Diego experimentava a sensação de não se achar em lugar nenhum. “No futebol, era goleiro suplente. Tentei ir para o basquete, mas não conseguia pegar a bola. Nem no coral da igreja consegui me integrar, porque era gago”, recorda. As coisas começaram a mudar quando o argentino, aos 16 anos, começou a fazer poesia e teatro. “Naquele momento, eu começava a achar meu caminho, mas tudo ainda era muito incerto”, aponta. Então, veio o Carnaval e ele viu uma pessoa se apresentando sobre pernas de pau. “Aquela imagem me impactou e pensei que eu queria fazer aquilo”, aponta.

 

Casa Circo Gamarra

 

Primeiros passos

 

Com o imaginário já tomado pelo universo circense, Diego Gamarra dava seus primeiros passos – tão apressados quanto trôpegos – na busca por informações sobre aquela arte. “Eu coloquei na cabeça que queria aprender aquilo e, na companhia de teatro, tinha um professor com mais trajetória, que conhecia a técnica das três bolinhas. Ele me explicou e eu passei a noite inteira em casa, treinando, com bolinhas de meia. Depois, cismei em fazer malabares com clavas, que fiz usando garrafas. Em seguida, fui fazer pernas de pau e até um monociclo”, rememora, lembrando que todo esse aprendizado se deu por volta de 1995, portanto, em um período em que o acesso à internet era diminuto e as redes sociais nem sequer existiam.

 

Diego Gamarra

 

“O jeito era aprender na marra. Se passava um palhaço pela cidade, eu entrava em contato, e, se passava um programa de TV sobre circo, geralmente aos domingos, eu gravava em VHS. Com o que aprendia, ficava treinando sozinho depois”, cita.

 

Profissionalização

 

A primeira vez que Diego Gamarra se apresentou frente a uma plateia, reconhece agora, foi embaraçosa e se deu em uma época do ano que, repetidas vezes, surge como um divisor de águas em sua vida: o Carnaval. “Fui para uma cidade interiorana, que, em termos de estrutura, não muda muito com o que encontramos no Brasil, com uma praça principal, onde as pessoas costumam se reunir no fim da tarde. E tinha um bar mais alternativo. Um primo me chamou para fazer os malabares lá. Então, em um ato de coragem movido pela ingenuidade – porque eu estava sozinho, sem nem mesmo um equipamento de som –, comecei a fazer o que sabia e, quando fui ver, a rua estava cheia de gente, os carros haviam parado. Fui improvisando e, ao fim, ao passar o chapéu, fui muito bem”, garante.

 

Diego Gamarra

 

Com o êxito, ele se tomou de confiança e começou a viajar com cada vez mais frequência, indo para cidades mais distantes. “Se, no começo, eu trabalhava durante o dia fazendo manutenção, de segunda a sexta, e à noite fazia um curso, reservando as viagens para o fim de semana, com o tempo isso foi mudando. Eu comecei a voltar para Rosário só na terça ou na quarta-feira, até que, em 1996, quando tinha por volta de 19 anos, decidi que queria viver só da arte circense”, relata. No mesmo ano, ele participou da primeira convenção de malabarismo e arte de circo de rua realizada na Argentina. “Lá, conheci centenas de pessoas que se dedicavam a essa carreira e vi que era possível e viável. Naquele momento, pela primeira vez na vida, tive a sensação de ter me encontrado”, diz.

 

Começos e recomeços

 

Um dos pioneiros no movimento do circo contemporâneo na Argentina, Diego Gamarra, em início de trajetória artística, decidiu fixar residência em Santa Fé, onde montou uma escola e fez diversas conexões, conseguindo contratos para apresentações em festas temáticas em boates por todo o Norte argentino. “Tudo ia muito bem. Rapidamente, eu conquistei muitas coisas. Mas, em uma dessas viagens, o ônibus em que eu estava pegou fogo. Eu levava comigo, em 15 bagagens, todos meus equipamentos e perdi tudo, até meus documentos. Então, quando voltei para a cidade, me veio uma tristeza muito grande e a dúvida se queria recomeçar naquele mesmo lugar”, situa.

 

Casa Circo Gamarra

 

O empurrãozinho que faltava para pôr o pé na estrada veio de uma companhia de teatro, que estava indo para El Bolsón, um vilarejo hippie perto de Bariloche, na região da Patagônia. “Eu tinha 21 anos e, encarando tudo como uma aventura, embarquei com eles”, reconhece. “Nos mudamos para o meio da montanha, na neve, para fazer teatro. E foi o que fizemos. Nos apresentamos em todas as escolas da região, fizemos tudo o que tinha para fazer com arte até que chegou um momento que não conseguíamos fazer mais nada. No verão, eu trabalhei como gestor de um espaço cultural, além de vender cachorros de balão, sobre pernas de pau, duas vezes ao dia em uma conceituada feira de artesanatos. “Fui guardando todas minhas economias em uma garrafa e, assim que terminou a estação, peguei a estrada de novo com a missão de percorrer a América Latina”, menciona.

 

América ‘no chapéu’

 

No percurso por países latinos, Diego passou pelo Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela e Guiana até chegar ao Norte do Brasil, entrando no país pela região amazônica. “Foram cinco anos na estrada enquanto o mundo se transformava. Acho que estava no meio da viagem quando fiz meu primeiro e-mail. E só lá no final fui ter um Facebook”, assinala, lembrando que, em toda trajetória, foram raras as noites que pernoitou em um hotel. “Eu dormia no ônibus, durante os trajetos, ou na casa de pessoas e sedes de movimentos culturais que conhecia. Com isso, morei em muitos lugares, com muitas pessoas diferentes, intercambiando com muitos grupos”, comenta.

 

Casa Circo Gamarra

 

O maior perrengue, em toda essa história, aconteceu em 2001, quando o artista contraiu dengue. “Eu estava na Venezuela, longe da minha cidade, da minha mãe. Naquele momento, decidi que deveria voltar para a Argentina. Decidi que faria uma passagem relâmpago pelo Brasil, ficando só 15 dias no país. Mas logo meus planos foram frustrados: só para conseguir entrar, foi preciso cumprir uma quarentena, porque eu estava sem a vacina da febre amarela”, diz, rindo da situação e revelando que só em 2003 chegou a sua cidade natal. 

 

A chegada

 

Em solo brasileiro, Diego investiu em agendas culturais típicas de cada região, além de fazer teatro de rua, oficinas e outros serviços – “sempre nessa área artística de apresentações e performances”, pontua. 

 

Casa Circo Gamarra

 

“Foi quando comecei a ver a questão dos projetos culturais e me dar conta que eu precisava de uma estrutura se quisesse crescer, afinal, eu estava fora do meu país de origem, não tinha computador, não tinha carteira de motorista, não tinha site e não tinha documentação para pleitear editais públicos. Nem sequer tinha CNPJ e, por isso, não conseguia realizar eventos. Foi quando decidi vir para Belo Horizonte, por muitos motivos”, relata ele, que resume: “Vi que, aqui, existia um terreno fértil para o circo. Entendi que, como em Santa Fé, no início da minha trajetória, eu podia plantar a minha semente nessa cidade”.

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