No "Big Brother Brasil”, da TV Globo, a divisão dos participantes entre os grupos VIP e Xepa motivou uma curiosa reflexão sobre a relação com os alimentos. Enquanto o VIP desfruta de refeições fartas, a Xepa enfrenta escassez, com acesso a cortes como fígado, rabada, dobradinha, moela e língua de boi. Para muitos participantes, consumir essas “carnes de segunda” é impensável, um contraste com a realidade fora da casa.
Embora haja quem torça o nariz para os miúdos, os defensores dessas iguarias têm uma resposta na ponta da língua: “O segredo é saber fazer”. Pode ser que, sim, seja tudo uma questão de tempero e preparo corretos. Pelo menos, esses dois pilares são indispensáveis na variedade de miúdos que protagonizam os petiscos no bar Timbuca, do chef Caetano Sobrinho.
Dobradinha, língua, moela, pé de porco… Tudo por lá é feito a partir de técnicas da fonte que o chef estudou por anos. “A diferença é que eu uni técnicas que conheci no mundo e uso ingredientes selecionados. Para o molho, em vez do colorau, eu uso tomate italiano, por exemplo”, explica o chef.
Moela com molho de tomates do restaurante Timbuca. Foto: Flavio Tavares/O Tempo
Em vez de acelerar o processo com panela de pressão, Caetano opta por cozimento lento em panela aberta, garantindo que a moela e a língua fiquem macias e absorvam todos os sabores. No cardápio, a dobradinha é servida com farofa de torresmo, e a língua ganha uma cobertura de cebola empanada crocante. Para atrair os curiosos, o chef oferece a possibilidade de pedir meia porção. “Os petiscos giram e as pessoas provam mais”, conta.
Economia
O aumento dos preços de cortes nobres de carne tem levado consumidores e chefs a repensar seus hábitos. Nesse cenário, os miúdos emergem como alternativas econômicas, sustentáveis e criativas. “A margem de lucro é muito melhor. Esses cortes têm pouca variação de preço, o que ajuda a manter pratos com filé-mignon no cardápio sem reajustes elevados”, afirma Caetano.
A tendência do aproveitamento integral do animal não é apenas uma questão de economia, mas também de sustentabilidade e criatividade nas cozinhas. A estratégia da chef Bruna Martins é o conceito de “hi-low” (“alto e baixo”), que refere-se a uma abordagem que combina ingredientes ou técnicas de diferentes níveis de sofisticação e custo, mesclando rústico e sofisticado. “Os opostos se atraem, não é?”, brinca.
Um exemplo é a massa com lulas, chouriço ibérico, dobradinha e caldo de galopé (galinha com pé de porco). “É uma forma de introduzir os clientes a esses sabores. Quem tem receio de comer dobradinha pode se surpreender com esse prato”, diz Bruna.
Outro destaque é o fígado de galinha, transformado em uma coalhada leve e equilibrada, servida com quibe cru de carne de sol e babaganuche de jiló.
Chef Bruna Martins combinou lula com dobradinha no Birosca. Foto: Victor Schwaner/Divulgação
Resgate
Os miúdos sempre tiveram um lugar especial na cozinha tradicional. Márcia Nunes, do restaurante Dona Lucinha, ressalta a importância da rabada na gastronomia mineira. “Ela comprova a necessidade de se usar tudo. É uma preciosidade da nossa culinária”, afirma.
No restaurante, o preparo segue os ensinamentos de Dona Lucinha, como deixar a carne descansar em água com cachaça e limão para suavizar o sabor – técnica batizada pela matriarca de “tirar as mágoas” da carne. A rabada é servida nos moldes mineiros, com muitas folhas de agrião.
Por outro lado, essa tradição tem um novo brilho quando passa pelas mãos de chefs criativos e incentiva a exploração de texturas e formas de preparo. No restaurante Nino, o chef Marco Renzetti prepara rabada braseada com vinho tinto e legumes, acompanhada de nhoque de batata. Ele também serve a “coda alla vaccinara”, receita romana em que o rabo de boi é cozido lentamente em um molho de tomate e vinho tinto, apresentado em formato de croquete.
Rabada braseada em formato de croquete, servida com nhoque de batata no Nino. Foto: Stephan Solon/Divulgação
“O aproveitamento do animal é uma questão atual muito importante; a gente preza muito por isso e é uma tendência global. Sabemos dos impactos da agropecuária no nosso ecossistema e, realmente, corresponde ao consumo mais consciente”, disse o chef. “Mas o ponto mais importante do aproveitamento desse tipo de corte é que ele é muito bom; não é só uma questão política ou social, é uma questão de gosto”, defende.
Ele ainda explica que, de forma geral, o rabo de boi precisa de um tempo de cozimento lento, com temperatura baixa, “para que a carne fique macia, mas sem que a fibra se desfaça”, descreve.
Já no novíssimo restaurante Trintaeum, a chef Ana Gabi Costa apostou no fígado bovino. Trabalhar com essa carne foi, antes de tudo, um desafio pessoal. “Eu cresci ouvindo os mais velhos me incentivarem a comer fígado, mas sempre foi difícil para mim. Decidi transformá-lo em algo palatável e sofisticado”, conta.
A acessibilidade desses cortes, aliada à possibilidade de criar pratos sofisticados, desperta o interesse de um público cada vez mais curioso e disposto a experimentar. “Uma fala que eu ouvia com frequência era: ‘Eu gosto de moela, mas só a que a fulana faz’. Esse discurso se repetia da mesma forma para falar da língua, da dobradinha... Então sempre considerei que é preciso cozinhar com dedicação e capricho para fazer um miúdo bom e saboroso”, relembra.
Jiló empanado na pururuca e recheado com fígado de boi, do restaurante Trintaeum. Foto: Victor Schwaner/Divulgação
No cardápio, o fígado recheia o jiló empanado na pururuca, servido com cebola caramelizada e mostarda. O segredo está no preparo: o fígado é deixado de molho no leite e, depois, salteado na manteiga com cachaça e tomilho, finalizado com nata para suavizar seu sabor. “É um prato que tem conquistado até os mais resistentes”, celebra Ana.
Aonde ir
Birosca s2
Rua Silvianópolis, 483, Santa Tereza
Timbuca Bar
Dentro do posto Ipiranga, na avenida Afonso Pena, 4.321, Serra
Nino
Rua Curitiba, 2.090, Lourdes
Trintaeum
Rua Prof. Antônio Aleixo, 20, Lourdes
Dona Lucinha
Rua Padre Odorico, 38, São Pedro