Imagine um coquetel com a aparência cristalina de um diamante, mas que ao primeiro gole revela uma complexidade de sabores que surpreende o paladar. Este parece ser o escopo perfeito para uma excelente “água que passarinho não bebe”, obtida por uma técnica de clarificação, tendência que está ganhando destaque nos bares mais inovadores pelo mundo, incluindo boas amostras nos balcões da capital mineira. Uma das metodologias mais intrigantes para alcançar essa transparência é a clarificação com leite, conhecida como “milk punch”. Aliás, uma velha conhecida, já que a receita mais antiga de milk punch de que se tem notícia é datada de 1711, na Inglaterra.
O consultor de bar e bebidas Davi Garcia explica que os coquetéis clarificados passam por um processo de remoção de partículas suspensas, resultando em uma bebida límpida e translúcida. Além da estética impressionante, a remoção de partículas em suspensão prolonga a vida útil da bebida – refrigerado, pode durar de seis meses a um ano. “Quanto menos partículas o drink tiver e maior for o teor alcoólico, mais tempo ele dura”, descreve.
Além disso, a técnica dá mais “evolução” ao paladar. “Assim como um molho ou uma feijoada, que costumam ficar ainda mais saborosos no dia seguinte, um coquetel clarificado ganha complexidade e harmonia”, compara. “Ao eliminar todas as partículas sólidas, o processo reduz significativamente a oxidação e a degradação dos compostos aromáticos, preservando a qualidade e a intensidade dos sabores por mais tempo”, explica. Automaticamente, a técnica “desafoga” o serviço na hora do preparo.
Para o restaurante Per Lui, em Belo Horizonte, Davi desenvolveu alguns coquetéis por meio da mesma técnica, como o Esotérica, que combina cachaça de amburana, matcha, baunilha, limão e iogurte. “Eu gosto de surpreender o cliente com um coquetel cristalino, despertando a curiosidade sobre os aromas e sabores presentes naquele líquido translúcido. Depois, vem a textura. A clarificação transforma a sensação na boca, deixando o coquetel mais untuoso e, ao mesmo tempo, leve. Ao remover todos os sólidos – como queijo, matcha e partículas de limão –, conseguimos um líquido mais refinado, que carrega apenas o melhor de cada ingrediente, resultando em um coquetel equilibrado e cheio de camadas de sabor”, disse.
Mas vale lembrar que o processo demora e requer paciência: entre 20 e 30 minutos cada 100 mL. “A clarificação leva tempo e nem sempre é possível concluir o processo de um dia para o outro”, disse.
Embora possa parecer contraditório adicionar leite a um coquetel, o processo é pura alquimia. O mixologista Xandão Loureiro complementa que esses coquetéis passam por um processo de “capturação” das partículas que dão cor à bebida. Após a filtragem das coalhadas, o resultado é um líquido límpido com sabores equilibrados. “Quando colocamos o coquetel em contato com o leite, ele talha – na prática é a aglutinação das partículas, que são retiradas com uma filtragem simples posteriormente”, explica ele.
Xandão cita como exemplo o uso da clarificação em coquetéis clássicos, como o whiskey sour. “Quando clarificado, ele muda a textura e sabor original, deixando-o mais aveludado e fácil de beber”, exemplifica. Já uma criação autoral é o drink chamado Parágrafo 6, para a carta do Rex Bibendi, feito a partir de uma infusão das cascas de cítricos no gim. A clarificação é feita com Licor 43, suco de limão e leite. “O resultado é um coquetel com toque amanteigado, baunilha e cítricos para equilibrar tudo à boca. É ainda finalizado com queijo mascarpone com maracujá e esferas do próprio licor”, descreve.
Além da receita servida no Rex Bibendi, ele produz no Cabernet Butiquim o Aloha, feito com rum saborizado no coco, Malibu, maracujá e abacaxi. “Esse coquetel é a prova de que poucos ingredientes podem oferecer intensidade no sabor. Ele é frutado, cítrico e doce na medida, tudo em um único líquido cristalino”, descreve.
Erros e acertos
Outro diferencial no sabor do milk punch é justamente o residual lácteo que deixa no paladar. “Fica interessante a depender do coquetel. Mas há também a possibilidade de usar ágar-ágar, uma substância gelificante extraída de algas que, além de ser vegana, não deixa tanto residual de sabor. Mas o manuseio é mais delicado”, antecipa a gestora de bares Jocassia Coelho. Para o novíssimo Whisper Bar, ela criou o Alquimista. “Clarifico um suco de uva tinta integral, e deixa um sabor bem delicado”, explica. O drink, que leva vodca e vermute como base alcoólica, chega à mesa completamente cristalino e gotinhas de azeite de limão.
Mas há drinks em que as versões milk punch são desastrosas. “Já tentei clarificar um bloody mary, e ficou péssimo, como se bebesse estrogonofe líquido. Foi só um teste, porque eu gosto da aparência desse coquetel como é”, relembra. Davi Garcia concorda: “Às vezes, a tentação de modificar receitas pode levar a resultados indesejados”.
De fato, apesar da tendência forte da taça translúcida à mesa, nem tudo cai bem com a clarificação. “É importante entender o perfil de sabor residual no coquetel e se realmente faz sentido clarificar. Há insumos com personalidades, texturas e cores tão interessantes que dão vida a qualquer receita. Então, não é ideal deixar tudo branco, um pouquinho de cor faz bem”, acredita Jocassia.
Milk punch nos balcões Brasil afora
Pelas mãos de Marcelo Emídio, chefe de mixologia do grupo Gitan, o clássico bitter giuseppe, drink italiano feito com cynar e vermute, ganhou versão clarificada. “Essa técnica, tão singular quanto fascinante, consiste na adição de leite integral e suco cítrico à mistura, provocando a separação dos sólidos do líquido. O resultado é uma bebida de textura aveludada, com uma persistência de sabor surpreendente e um equilíbrio que conquista o paladar desde o primeiro gole”, garante ele, que desenvolveu o San Giuseppe para o restaurante Posì Mozza & Mare, no Rio de Janeiro.
Já o Drunks, bar de alta coquetelaria que fica no mezanino do restaurante Osso, em São Paulo, serve o Juro que É o Último. O nome sugestivo batiza um drink feito com blend de runs, infusão de manteiga noisette, vermute seco, óleo sacharrum de banana-da-terra, angostura bitter tradicional, leite e limão- taiti.
“Ele é um dos nossos coquetéis mais famosos e leva 96 horas para ficar pronto. Colocamos todos os ingredientes em um recipiente e tampamos, para que o leite coagule lentamente, o que permite retirar maior quantidade de polifenóis, sólidos, e, assim, clarificamos o drink. O resto dos sólidos é coado, resultando em um coquetel totalmente clarificado, com uma textura agradável e sabores leves, amendoados, frutados, cítricos, com um final levemente seco”, explica Marlon Silva, chefe de bar e sócio do Drunks.