A capital chilena não é apenas um ponto de partida para rotas pelas vinícolas em regiões como Vale do Colchagua, Vale do Maipo ou pelas cordilheiras andinas. A cidade se afirma, cada vez mais, como um polo gastronômico vibrante e multifacetado. Sim, a tradição dos vinhos segue desempenhando um papel central. Mas não só: a culinária urbana está em plena efervescência criativa. Trata-se de uma nova fase, em que surgem propostas como a do restaurante Fukasawa, comandado pelo chef Marcos Baeza e seus filhos gêmeos Marcus e Lucas, que mistura técnicas japonesas refinadas com frutos do mar chilenos, como ouriços-do-mar, locos e piures, pescados em águas frias e puras da extensa costa do Pacífico. “O equilíbrio entre a técnica japonesa e a alma chilena nasce de uma conexão profunda com a nossa matéria-prima”, afirma o chef.
Ao contrário de outras casas de culinária japonesa fora do Japão, o Fukasawa rejeita adaptações que distorcem a tradição. Baeza, inclusive, foi um dos primeiros chefs a abolir o uso de cream cheese em rolls no país, ainda em 2014 – um marco que indicava um novo rumo: o da autenticidade. Hoje, o menu do restaurante é uma celebração ao mar chileno.
O chef garante o fornecimento de ingredientes de altíssimo nível, por meio de um contato estreito com os produtores, que são traduzidos em pratos como tutano cozido no estilo robatayaki – método tradicional japonês de grelhar alimentos lentamente sobre brasas de carvão – servido com ouriço-do-mar fresco, raspas de limão, yuzu, cebolinha e sal da região de Valdivia; ostras chilenas; ouriços-do-mar frescos com caviar servidos em um ninho de batatas; e a enguia flambada em molho unagi, sriracha, ovo de codorna, sal de Lo Valdivia e katsuobushi (lascas de peixe bonito seco) e o sashimi de congrio defumado com vinagrete de algas, uma interpretação elegante e local de sabores do Pacífico. “Há 25 anos, quando comecei a trabalhar com culinária japonesa no Chile, éramos muito poucos. Hoje, vemos uma cena diversa, em que as influências internacionais se integram melhor com nossa identidade local”, acredita Marcos Baeza.
Ele ainda destaca que a coerência e o respeito pelo ingrediente são os pilares de sua cozinha – muitos, inclusive, são extraídos do Mercado de la Vega Central, parada obrigatória para quem se interessa por produtos locais. Talvez seja o movimento que está consolidando Santiago como um destino gastronômico de prestígio.
Mesma fonte
Com mais de 6.000 km de costa, o Chile oferece um leque excepcional de ingredientes marinhos, criados em águas frias e puras. Trata-se de uma biodiversidade marinha rara. Na cozinha, se tornam fonte inesgotável. E, quando a sentimos em cada garfada, torna-se poderosa. Restaurantes como o premiado Boragó, do chef Rodolfo Guzmán, e a acolhedora Pulpería Santa Elvira, comandada pelo chef Javier Avilés, são dois exemplos de como a costa chilena tornou-se protagonista de uma cozinha que une memória, inovação e sustentabilidade.
O Boragó, restaurante chileno mais premiado internacionalmente – atualmente ocupa o 5º lugar na lista dos 50 Melhores Restaurantes da América Latina (2024), é reconhecido mundialmente por sua cozinha endêmica, assinada pelo chef Rodolfo Guzmán. O chef, inclusive, mantém o Centro de Investigación Boragó (CIB), que atua como um laboratório de pesquisa gastronômica ao explorar, documentar e aplicar ingredientes nativos e técnicas culinárias ancestrais chilenas.
O resultado dessa pesquisa está no conceito que valoriza ingredientes nativos, muitos deles encontrados apenas em determinados biomas chilenos. Seus menus sazonais exploram a biodiversidade do país, com produtos colhidos em florestas, montanhas e ao longo da extensa costa do Pacífico. “Nosso trabalho é dar visibilidade ao que já existia antes de nós”, disse o chef ao apresentar o menu-degustação especial de verão.
Outra prova cabal de que o futuro da cozinha chilena mora no mar está também na simpática Pulpería Santa Elvira, do casal Javier Avilés e Flor Velasco, que ocupa a 57ª posição na lista dos Melhores Restaurantes da América Latina 2024, publicada pelo The World’s 50 Best. O cardápio, anunciado em uma lousa, é enxuto e sazonal, com cerca de quatro entradas, quatro pratos principais e duas sobremesas, sempre destacando ingredientes de pequenos produtores e de diferentes regiões do Chile, como ensopado de congrio coberto com uma espuma feita da própria cabeça do peixe e cogumelos sazonais, como loyo e níscalos.
“Acho que, depois de muitos anos, principalmente após a Covid-19, o mar chileno e seus produtos finalmente ganharam destaque, e muitos restaurantes passaram a se dedicar a essa temática”, acredita o chef Javier Avilés. “No Pulpería, não falamos apenas do mar – falamos também dos produtos típicos da nossa terra, além das tradições e do patrimônio, com um olhar mais contemporâneo. Nossa busca é mostrar o Chile em toda a sua amplitude, de norte a sul, da cordilheira até a costa, valorizando seus produtos”, finaliza.
A sazonalidade e os ingredientes nativos do litoral chileno são destaque também na Casa Las Cujas, do empresário Max Raide, que ocupa a 72ª posição na lista dos Melhores Restaurantes da América Latina, em que o chef Antonio Moreno utiliza produtos como centolla (caranguejo-rei), peixes frescos, moluscos abalones, chocas (lulas), almejas (amêijoas), ouriços e camarões de rocha.
Empenho
Com uma geografia que mescla desertos, florestas, montanhas e uma costa rica em recursos marinhos, o Chile não busca referências externas, mas se reconhece nos ingredientes que vêm da terra, da cordilheira e, sobretudo, do mar. É o nascimento de uma identidade culinária própria, moldada pelo território e guiada por um forte senso de pertencimento.
Sem abandonar a excelência de suas vinícolas, que seguem explorando com criatividade os microclimas costeiros, o Chile começa a se afirmar como um polo gastronômico global. O chef Marcos Baeza acredita, sim, que falta pouco para que Santiago se firme como um polo global. “Estamos no caminho certo, mas ainda precisamos consolidar um espírito de colaboração. Se cozinheiros, jornalistas, críticos e produtores trabalharem juntos para mostrar o Chile ao mundo, o reconhecimento virá de forma natural”, acredita.
Mulheres se destacam na cozinha chilena
Nos últimos anos, o Chile tem se destacado nas principais listas gastronômicas da América Latina por meio também do trabalho das mulheres. O Ambrosía Bistrô, que fica no Mercado Urbano Tobalaba (MUT), sob a direção da chef Carolina Bazán e da sommelier Rosario Onetto, tem como proposta gastronômica o destaque de ingredientes da temporada e frescos, com preparos modernos e técnicas francesas, como tartare de peixe, pepino, limão, ají amarelo, granita de piure, molusco marinho da costa do Pacífico Sul. Bazán foi premiada como a Melhor Chef Feminina da América Latina em 2019.
Outra visita imperdível é a confeitaria de Camila Fiol, mente por trás da Fiol Dulcería, na capital chilena. No ano passado, ela foi eleita a Melhor Chef Confeiteira da América Latina pelo “Latin America’s 50 Best Restaurants”. E com razão: o endereço é um convite para degustar sorvete feito com lúcuma andina coberto com sementes de gergelim preto e gengibre confitado; marshmallows artesanais em formatos arredondados, com sabores como matcha e recheios de yuzu e grapefruit; e o imperdível biscoito de queijo grana padano com chocolate ao leite, baunilha e sal do deserto.
Toque oriental
Santiago, em especial, tornou-se um polo de cozinhas de influência asiática, com propostas que vão desde o tradicional sushi até fusões inovadoras, como a culinária nikkei (japonesa-peruana) e experiências com chás orientais – caso do Yum Cha. Inspirado por sua experiência na China, o chef Nicolás Tapia criou um menu-degustação de dez etapas, que combina ingredientes chilenos, como peixes e mariscos, com técnicas da culinária chinesa – como o excelente merluza austral com kimchi branco e repolho chinês – e harmonizações de chás selecionados de diversas partes do mundo.
Outro endereço é o restaurante Karai, que encanta com a sua proposta nikkei, que harmoniza a técnica japonesa com os sabores vibrantes da culinária peruana, utilizando ingredientes frescos do Chile. Um bom exemplo é o sashimi de salmão com salsa verde cítrica, óleo de merken e picles de cebola, e as fatias de loco com maionese de colágeno marinho, molho verde e tapioca ponzu. Vale lembrar que a casa tem a chancela do chef Mitsuharu “Micha” Tsumura, do premiado restaurante Maido, em Lima, no Peru. As execuções ficam a cargo do chef Sebastian Jara.