O primeiro registro decorre de 2 mil anos antes de Cristo. Segundo esta versão, o povo Mochica, situado ao litoral norte do Peru, teria sido o primeiro a marinar peixe cru em um suco de curuba, fruto similar ao maracujá brasileiro. Mas como tudo o que se perde no tempo se renova, outra versão corrente nos informa que os Incas, responsáveis pelo maior império da América pré-colombiana, marinavam seus pescados em uma bebida fermentada à base de milho, adicionando-lhe a picância da pimenta aji.
A partir do século XVI, com a invasão e colonização espanhola, a acidez de um ingrediente cítrico como a lima, o limão ou a laranja azeda se tornaram obrigatórios no preparo desta iguaria que ganhou, para “chamar de seu”, o 28 de junho, Dia Internacional do Ceviche.
Declarado pela Unesco como Patrimônio Imaterial da Humanidade e expressão da culinária tradicional peruana, o próprio nome ceviche carrega uma aura mítica e cercada de mistérios. O renomado geógrafo peruano Javier Pulgar Vidal defende que a raiz da palavra descende do quíchua, dialeto de origem indígena ainda falado por cerca de dez milhões de grupos étnicos ao longo de toda a cordilheira dos Andes, em países como Peru, Bolívia, Chile, Equador, Colômbia e Argentina.
De acordo com a investigação de Vidal, o ceviche teria nascido como “siwichi”, expressão para peixe fresco. Já o historiador Juan José Veja levanta a hipótese de uma origem árabe, com a palavra “sibesh” significando “comida ácida”. Tal versão encontra eco no fato de que as mulheres mouras escravizadas pelo explorador espanhol Francisco Pizarro (1476-1541) marinavam o peixe cru apreciado pelos incas num suco de laranja azeda. Favorece tal tese o conhecimento de que os árabes introduziram os cítricos na Europa.
Milenar, orgulho de um povo, emblema cultural, o ceviche se tornou a última moda nos círculos gastronômicos de Belo Horizonte, nossa já folclórica capital dos bares. Natural de Huancayo, no distrito de Junín, o peruano Christian Mauro Lavando Ramón morou no interior de Minas e em São Paulo antes de desembarcar por aqui, em 2014. Os familiares da esposa, também peruana, já residiam no Brasil há mais tempo, o que estimulou a mudança.
Ao lado de um sócio, ele iniciou seu empreendimento culinário de maneira modesta. “Não tínhamos capital nem nada. Começamos oferecendo jantares e degustações nas casas das pessoas, em que elas chamavam outras. Nossa logo era ‘cozinha peruana na sua casa’”, declara Christian, que, ao perceber que os mineiros aprovavam os pratos, arriscou um novo passo. “Abrimos esse pequeno espaço que temos há quase seis anos. Eu e meu irmão somos os proprietários”, conta.
Sabor
Desde 2019, o Mishki Mikuy, uma pequena portinha localizada no bairro Estrela Dalva, tornou-se referência de comida peruana em Belo Horizonte, tendo o ceviche, claro, como carro-chefe. Preparado com peixe branco, preferencialmente tilápia, apesar de experimentos já realizados na casa com linguado e dourado, a receita investe no saboroso leite de tigre, essencial para que o ceviche, de fato, mereça esse nome.
Seguindo a tradição peruana, o restaurante utiliza cebola, gengibre, salsa, coentro, sal e sobretudo limão. O caldo de leite de tigre que vai ao liquidificador ainda se vale das partes de peixe cru que sobram do filé. Montado, o prato é finalizado com o acompanhamento de cebola roxa cortada, um pouco de coentro e pimenta-aji. “Tratamos de servir do mesmo jeito que nos restaurantes mais populares do Peru”, confirma Christian. Ele admite que as pessoas que viajam ao país voltam “encantadas”.
“O ceviche é um prato nacional do Peru que se encontra em todo o mundo. Algumas pessoas mais resistentes a novidades me pedem para tirar o coentro, a cebola, mas argumento que elas precisam experimentar o ceviche peruano, e, se não gostarem, tudo bem, mas duvido que isso aconteça”, brinca Christian. Ele mesmo percebe similaridades entre a cozinha peruana e a brasileira, como a presença de arroz e feijão, mas ressalta diferenças substanciais.
“A comida brasileira é muito prática, a nossa dizem que é chata, tem muitos ingredientes, muitos processos para preparar cada um deles. A gente come coisas parecidas, mas o tropeiro, a feijoada, são coisas que só encontrei aqui, eu me encanto com o franguinho com quiabo”, derrete-se. Christian também faz questão de dizer que, ao contrário do que algumas pessoas pensam, “o ceviche não tem nada a ver com sushi”. Apesar disso, o restaurante El Mai, localizado no bairro de Lourdes e dedicado à gastronomia asiática, insere uma inovação ao prato.
“Na casa, trabalhamos com diferentes versões de ceviche, mas o que realmente se destaca é o nosso ceviche de salmão fresco. Ele é preparado com leite de tigre, cebola roxa, pimenta dedo-de-moça, coentro e finalizado com uma redução de maracujá extremamente equilibrada, que confere um toque tropical e sofisticado ao prato. Essa combinação traz frescor, acidez e um leve dulçor, criando uma experiência de sabor única”, explica o engenheiro de produção Rodrigo Paiva, proprietário e fundador do El Mai.
Paiva salienta que um dos pilares do ceviche da casa, “inspirado na tradição peruana”, é o caldo de peixe utilizado na base do leite de tigre. “Ele é cuidadosamente preparado na nossa cozinha, cozido lentamente por cerca de 8 horas, o que permite concentrar e intensificar o sabor do pescado. Esse cuidado na extração de sabor traz uma profundidade única ao prato, respeitando a essência do ceviche peruano”, afirma.
Estilo
Paiva não tem dúvidas de que “o segredo de um bom ceviche está no equilíbrio do leite de tigre”. “Ele precisa ser aromático, ácido na medida certa e com um toque de picância. Mas, acima de tudo, é indispensável trabalhar com pescados frescos e de altíssima qualidade. Sem um peixe fresco, não há ceviche que se sustente”, constata. A própria alcunha um tanto quanto inusitada deste ingrediente essencial atrai a curiosidade dos paladares antes mesmo da degustação do prato. A cor clara e sua consistência leitosa, associada ao fato de ser indicado para curar ressacas e fortificar o organismo, teria originado a expressão “leite de tigre”, logo popularizada em todo Peru.
Paiva compreende que tanto a cozinha brasileira quanto a peruana “compartilham uma forte herança indígena, o que se reflete na diversidade e no uso de ingredientes nativos”. “No Brasil, temos uma abundância de peixes de água doce e salgada, mandioca, castanhas, pimentas e ervas aromáticas. No Peru, há uma imensa variedade de batatas, milhos, quinoa, ajíes e frutos do mar. Ambas valorizam o frescor e o protagonismo do ingrediente, sempre buscando sabores autênticos e bem equilibrados”, discorre.
Por conta disso, o ceviche teria conquistado o paladar brasileiro ao unir certas características. “É leve, fresco, saudável e extremamente saboroso. Além disso, a afinidade com ingredientes já conhecidos no Brasil, como os cítricos, as pimentas e os peixes frescos, facilita essa conexão com o público. Ele entrega sabor e refrescância, o que combina muito bem com nosso clima e estilo de vida”, avalia Paiva.
A chef Ju Muradas, que prepara na Deli Fresh Food, na Savassi, um ceviche à base de tilápia fresca, concorda que o prato faz sucesso por ser “extremamente saboroso, com potência de sabor, pouco carboidrato e de rápido e fácil preparo”. “Além disso, num país tropical como o Brasil é um prato para ser consumido durante todo o ano pelo seu frescor”, pontua. Ela acredita que o ceviche é “um prato relativamente simples de se preparar”.
“Se tiver um bom ingrediente, pode ser atum, tilápia, salmão, camarão, banana, é só ficar atento ao tempo de ‘cozimento’ e pesar a mão nos temperos. Tem que ter potência de sabores, encher a boca”, ensina. O ceviche do restaurante localizado no Grande Hotel Ronaldo Fraga vem acompanhado de salada de pepino japonês, maçã, cenoura e leite de coco. “Aqui temos crocância e doçura que contrasta com a acidez do limão, com a pimenta e o gengibre”, diz Ju. Elmo Barra segue a linha.
Portas
O chef do bar e restaurante Dorsé, na rua Sapucaí, investiu em um ceviche “com menos pimenta e coentro do que o tradicional peruano” a fim de atender a “uma parcela maior do público, principalmente pelo fato do coentro não ser uma erva muito comum em Minas”. “Nesse contexto regional, também usamos um peixe de água doce, já que o acesso a peixes de água salgada de qualidade é mais difícil pela nossa localização. Acrescentamos ainda manga e tomate sweet grape, para acentuar a acidez, com o dulçor desses ingredientes”, elabora Barra.
Ele observa que “o fato de ser baixo em calorias torna o ceviche uma ótima opção para quem busca uma alimentação mais leve”. “No Peru, o ceviche é um prato tradicional, mas acessível e considerado uma ‘comida de rua’, e essa informalidade o transforma numa opção fácil de fazer e de se consumir”, complementa ele, destacando o papel da imigração e da globalização no sucesso do ceviche pelo mundo, abrindo as portas à culinária peruana.