“O cheiro, penetrante, difuso, entrou até nas garrafas fechadas de Coca-Cola (…). Que diabo seria aquilo?, perguntavam surpresos”. A lembrança da cronista gastronômica Nina Horta (1939-2019), na crônica “Coca-Cola com Cheiro de Pequi”, de 2005, traduz bem o poder desse fruto: intenso, invasivo, impossível de ignorar. No Cerrado e no Norte de Minas, ele é cotidiano; em Belo Horizonte, tem ganhado novas formas nas mãos de chefs que ressignificam o “ouro do sertão” em pratos que desafiam preconceitos e conquistam paladares.

Por meio de receitas e criações autorais, chefs defendem o pequi como um ingrediente indispensável em Minas Gerais – e conseguem conquistar até os paladares mais resistentes. O chef Caio Soter é um deles. No restaurante Pacato, ele trata o pequi como um ingrediente que precisa ser defendido e assume com orgulho o papel de seu defensor.

“Uma vez me falaram que eu não deixei de ser advogado, eu só troquei a causa”, relembra o chef, que também é formado em direito. “Acho que é isto: continuo defendendo o que considero injustiçado. E o pequi, junto com o jiló, é um deles”, afirma.

Injustiçado? Para ele, a polêmica em torno do fruto vem do mau uso. “Talvez tenha sido mal trabalhado, exagerado, por isso muita gente torce o nariz. O segredo é dosar, modular o sabor. Uso o pequi como tempero: ele está ali, evidente, mas sem atropelar os outros ingredientes”, acredita.

Entre os experimentos que já fez com o fruto, a lista é extensa: infusões, purê de baroa com pequi, sorvete, creme inglês, picles, marmelada, pão, emulsões e até esferas de gastronomia molecular. “Acho que já usamos o pequi de todas as formas que se pode imaginar”, brinca. 

No menu atual, Soter foi além: criou uma sobremesa que une pequi e coentro. “São dois ingredientes polêmicos, e a graça está no equilíbrio. O que mais me encanta é a surpresa do cliente: ‘Eu não gostava de pequi até comer isso’. Para mim, isso é o advogado interior comemorando uma injustiça reparada”, brinca.

Mousse de pequi, castanha de pequi caramelizada, sorbet de pequi com laranja e bolo de semente de coentro com iogurte do Pacato. Foto: Victor Schwaner/divulgação

 

Criações. No Andu de Dois, casa de culinária nortista-mineira de BH, a chef Maria Clara Alves, ao lado de Hernane Souto, reforça o papel do fruto na identidade de sua cozinha: “O pequi é o ouro do Norte de Minas. Ele nutre, é fonte de renda e é cultura. Nele tudo se aproveita: da casca que alimenta o gado ao óleo que tempera pratos. É um alimento que fala de quem somos”.

Em seu cardápio, o ingrediente aparece em versões tradicionais e criativas: sorvete, arroz com pequi e carne de sol, farofa e até vinagrete de feijão andu com mandioca na manteiga. Ah, a pimenta da casa também é feita no óleo de pequi. “Sempre tem gente que chega dizendo que não gosta, mas a gente oferece a farofinha e, na maioria das vezes, eles se encantam. É sensação de dever cumprido”, celebra.

Vinda do Cerrado, mais especificamente da comunidade de Mangaí, na cidade de Japonvar, a polpa serve de base para uma cremosa maionese, criada pela chef Ju Duarte, do restaurante Cozinha Santo Antônio, para acompanhar o pastel Maria da Cruz – uma homenagem à figura histórica de Maria da Cruz, comerciante rebelde que liderou motins no sertão mineiro contra impostos da Coroa portuguesa no século XVIII.

A receita é recheada com carne de meia-cura de boi curraleiro-pé-duro e requeijão moreno, pronto para mergulhar na maionese de pequi antes da primeira mordida. “O maior desafio é quebrar a resistência das pessoas. A maionese é uma resposta a isso: mais suave, sem deixar de ser marcante. Até quem não gosta acaba animando provar e se surpreende”, diz.

Pastel da Cozinha Santo Antônio leva recheio de peito de boi Curraleiro Pé-Duro desfiado com requeijão moreno, acompanhado de maionese de pequi. Foto: Flávio Tavares/ O Tempo

 

Por inteiro. Não é só a polpa que conquista os chefs na hora de criar receitas. No bar A Porca Voadora, a chef Bruna Rezende aposta na castanha de pequi para reinventar combinações e surpreender. Em sua coalhada seca com castanha de pequi, o ingrediente ganha protagonismo: vem diretamente de Montes Claros, no Norte de Minas Gerais, por uma produtora – a Nenê, a mesma que fornece o fruto para o restaurante Pacato, por meio do movimento slow food. “Quando tive as castanhas em mãos, pensei em unir sua crocância e perfume à acidez da coalhada. Foi um casamento perfeito”, conta, sobre o prato.

O desafio de manter o prato sempre no menu passa pela sazonalidade do fruto. “O pequi é temporão. A safra da castanha acontece em um período só, geralmente em março. Ou a gente congela, ou espera o próximo ano”, explica.

Coalhada com castanha de pequi e picles de uva d'A Porca Voadora Bar. foto: Luisa Macedo/divulgação

 

Fusão. Já no restaurante Birosca, a chef Bruna Martins encarou o desafio: o ingrediente, até então, era evitado por ela, até criar a Pimentinha: prato feito com pimenta de cheiro recheada com carne de porco moída com bacon e linguiça caipira, em uma fina massa de tempurá, besuntada com um “caramelo de pequi” e acompanhada por uma maionese e pó feitos com o fruto.

“Eu nunca fui fã de pequi, então o desafio foi fazer algo que eu mesma gostasse. Pensei no caramelo porque me lembrava a técnica de vitrificar no pós-fritura, como na banana chinesa caramelizada. O pequi entrou como elemento agridoce, em três versões: caramelo, maionese e pó”, explica, sobre a receita, que faz uma fusão entre a comida mineira e a asiática. 

Para a chef, explorar o fruto é um gesto de respeito. “O pequi sempre esteve presente como traço da cozinha mineira. Ignorá-lo não era uma opção. Na cozinha autoral, precisamos mergulhar nos nossos biomas”, acredita.

 

Fruto vira arte e doçura 

Na edição CasaCor Minas deste ano, o restaurante Minéra apresenta uma confeitari assinada por Sá Marina. No menu de sobremesas, entre os doces inspirados nas belas-artes, Breu chama atenção. A criação une chocolate intenso, tangerina e castanha de pequi, ingrediente que, embora típico no Norte de Minas Gerais, raramente é visto em doces. “A castanha de pequi está mais aberta para brincarmos com outros sabores. Tem textura que se adequa ao preparo, aroma delicado e sabor marcante na medida certa”, explica a confeiteira. 

Mais do que técnica, a proposta de Sá Marina é também política e poética. “A castanha de pequi, envolta por espinhos, é extraída manualmente; muitas vezes por mulheres que esperam o fruto secar. Um processo delicado que revela sua sofisticação natural”, acredita.

Na receita, a castanha aparece em diferentes camadas, criando contrastes com a acidez da tangerina e o amargor do chocolate. “Sabores marcantes gostam do azedinho. Usei a tangerina para ‘dançar’ com ele – e deu certo.” Para Sá Marina, confeitaria também é risco. “Um risco bom, que vale a pena no final”. 

Breu: uma esfera de chocolate intenso, castanha de pequi e tangerina. Todas trazem camadas de sabor e narrativa, como pequenas obras servidas no prato. Foto: Natália Campos/divulgação

 

Pequi no copo

Tradicional na cozinha do cerrado, o pequi também marca presença nos balcões de coquetelaria. No bar Bença Bençoi, na Lagoinha, o mixologista Conrado Salazar criou a Pequirita, um coquetel autoral que combina tequila, licor de pequi, limão siciliano, azedinha e soda de grapefruit. A ideia surgiu a partir de um novo olhar para Minas Gerais: “Pensei em abrir um pouco o meu leque, pensando no Estado como um todo – sua gastronomia, suas sobremesas, sua cultura, seus terroirs – e fazer a união de produtos tipicamente mineiros com produtos de outras regiões do mundo”, conta Conrado.

Segundo ele, a criação da Pequirita foi uma “dança” entre intensidade, acidez e frescor. Mesmo com o desafio de trabalhar um ingrediente com sabor tão marcante, a recepção do público tem sido positiva. “É um ingrediente complicado... sempre tive dificuldade de consumir. Mas a combinação ficou inusitada e surpreendente. Até eu pediria vários”, brinca o mixologista, que destaca a drinkability – prazer com que a bebida pode ser consumida – como prioridade em suas criações.

Drink feito com tequila e licor de  pequi do Bença Bençoi. Foto: Victor Schwaner/divulgação