Belo Horizonte, conhecida por sua rica tradição culinária, abriga uma variedade de iniciativas gastronômicas que festejam e reafirmam a cultura negra através do paladar. Pauta merecedora de ser destacada ainda mais pela influência deste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, que celebra a cultura africana e como ela se faz presente em nossa sociedade.
Endereços na capital mineira não apenas servem pratos deliciosos, mas também contam histórias de resistência e tradição. Através de workshops, festivais gastronômicos e eventos culturais, eles buscam, além de servir comida, educar as pessoas sobre a rica história e o significado cultural por trás de cada prato, como é o caso do Mandak Nega, espaço gastronômico e cultural no bairro Santa Efigênia desde 2019.
“Nossa proposta é desmistificar a alta gastronomia, não de um ponto de desprezo, mas enfatizando os conhecimentos tradicionais, com receitas que destacam alimentos e práticas que foram desenvolvidas na culinária afro-brasileira”, explica o chef e idealizador Stanley Albano.
Um dos carros-chefes é o pastel de angu, herança da culinária africana “pelo principal componente ser o fubá, muito utilizado na cultura alimentar”, como destaca o chef, que, neste ano, também encabeçou o Mandraka Chef – Culinária Mineira de Quebrada, concurso gastronômico com foco nas receitas ancestrais mineiras que são passadas de geração para geração.
“Foi um projeto muito lindo. No processo de curadoria, enfatizamos a busca por participantes de quebrada e de maioria negros, uma forma de conhecermos outras histórias e costurar saberes e formas de vivenciar a culinária mineira e de quebrada. Somos ricos nesses aspectos”, relembra.
Tradição
Outras iniciativas, como o espaço Mandak Nega, ajudam a manter viva a memória dos ancestrais africanos e celebrar a influência duradoura da cultura africana na sociedade brasileira. No mês passado, o Festival de Arte Negra de Belo Horizonte (FAN-BH) organizou o mapa gastronômico com recorte racial.
“Essa seleção reflete não apenas a cultura do povo preto em diversos aspectos, mas também fala muito sobre a não visibilidade de pessoas pretas em cargos de liderança em diversos meios”, explica Ana Flávia Gomes, que fez a curadoria do projeto que abordou 18 estabelecimentos das nove regionais de Belo Horizonte que têm em comum a conexão com a cultura afro-brasileira.
“Busquei lugares onde os chefs utilizam ingredientes, técnicas e tradições que remetem à diáspora africana. A cultura africana se manifesta de diversas maneiras nesses endereços. Pode ser na escolha de ingredientes típicos, na inspiração para a criação de pratos, na decoração ou até mesmo na música. Mas a seleção desses estabelecimentos inclui principalmente a representatividade do povo preto na gestão e operação desses estabelecimentos”, explica.
Entram nesse guia lugares como o Barracão Nossa Roda, que fica no bairro São Bernardo e é gerenciado pelo chef Juninho Bau, e o Mirante Botequim, no bairro Concórdia, com Geysa Bedeti à frente do estabelecimento conhecido pela valorização da cultura negra, sonoridades ancestrais e cozinha de quilombo, com receitas como arroz com suã, um dos pratos servidos no espaço.
Contribuições.
Seja por meio de workshops, festivais ou eventos culturais, chefs buscam não apenas servir comida, mas também educar as pessoas sobre a rica história e o significado cultural por trás de cada prato. A culinarista Kelma Zenaide, à frente do Kitutu Gourmet, é especialista em unir sabores e saberes da culinária afro-mineira.
Ela, que se especializou em literaturas africana e afro-brasileira, cresceu vendo o avô preparar as comidas no Quilombo de Pinhões, em Santa Luzia (MG), onde cresceu em um quintal repleto de porcos e galinhas.
Alguns pratos mais comuns, e que vem dos antepassados de Kelma, são o frango ensopado, o macarrão com urucum e o tutu de feijão, servido com ovos cozidos e cebola em rodelas. Outra iguaria é o angu de mina, feito com coração de boi em iscas misturados com suã, cenoura, moranga, batata-inglesa, batata-doce, jiló, couve, quiabo e cheiro verde, que vão por cima do angu de fubá de moinho d’água.
Além do Kitutu, que desde sua criação leva afeto às pessoas por meio das tecnologias ancestrais de matriz afro-brasileira, Kelma realiza outras iniciativas, como a oficina de culinária afetiva “Afrogastronomia: Sabores e Saberes Ancestrais”, que foi realizada durante este mês. Ainda planeja a inauguração do Kitutu Território de Aquilombamento, de culinária afrodiaspórica, no centro de BH.
Histórico
Para Patty Durães, pesquisadora de culturas alimentares, a África é sinônimo de berço da humanidade. “É onde foram descoberta as grandes tecnologias e inovações que o mundo utiliza desde então, como mineração, agricultura e astronomia. É do continente africano a fermentação, por exemplo. Então comemos pão e tomamos cerveja e vinho por causa dos povos africanos, que descobriram essa técnica de fermentação de frutas, grãos e cereais e nós aprimoramos”, exemplifica.
Um aspecto fundamental da contribuição gastronômica do continente africano é também o uso de ingredientes que se tornaram populares entre os africanos durante a diáspora. Itens citados pela pesquisadora, o quiabo, o azeite de dendê, o feijão-preto, o inhame e o jiló, que são essenciais na culinária brasileira e também mineira, têm raízes profundas na gastronomia africana.
Além da contribuição gastronômica no que diz respeito a ingredientes, a pesquisadora pontua o papel das empreendedoras no Brasil. “As primeiras mulheres empreendedoras foram as negras que, no período colonial, saíram às ruas com seus tabuleiros vendendo suas produções, de quitutes e quitandas, e, com o ganho, elas compraram alforrias, bens e joias”, disse Patty.