A qualidade das conexões sociais de mulheres na meia-idade é um marcador de risco comparável a obesidade, sedentarismo ou consumo de álcool para o desenvolvimento de doenças crônicas na maturidade. É o que indica o estudo conduzido pela Universidade de Queensland, que acompanhou ao longo de duas décadas a saúde de 7.694 australianas inicialmente saudáveis e na faixa dos 45 a 50 anos, indo na contramão da ideia de que bastaria “ter muitas amizades” ou “estar casada” para garantir proteção: conforme a pesquisa, afinal, o fator decisivo não é o tamanho, mas o grau de satisfação que cada mulher declarava sentir em cinco esferas de relacionamento – parceria amorosa, família, amizades, colegas de trabalho e atividades sociais.

Conforme a publicação, quanto menor o grau de satisfação, calculado individualmente ou a partir do acumulado dessas relações, maior a probabilidade da ocorrência de duas ou mais doenças crônicas, fenômeno conhecido como multimorbidade. No caso da pesquisa, foram observadas questões como depressão, ansiedade, diabetes, pressão alta, cardiopatias, acidente vascular cerebral, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), asma, osteoporose, artrite e câncer. Naturalmente, conforme observam os autores, o resultado dessa sobreposição de condições crônicas é o agravamento do quadro clínico, levando essas pacientes a pressionarem os serviços de saúde.

Os apontamentos da pesquisa não surpreendem a psiquiatra Christiane Ribeiro, integrante da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “A gente já sabia, há algum tempo, que o isolamento social e a sensação de solidão são fatores de risco para a depressão, ansiedade e outros transtornos mentais. O que esse estudo demonstrou é que os efeitos vão mais longe, impactando também no adoecimento físico”, situa, lembrando que é possível estar casada ou ter muitos amigos e ainda assim sentir-se solitária ou pouco apoiada.

“Eu acredito que esses resultados seriam similares caso a pesquisa fosse realizada no Brasil, pois o impacto da falta de vínculos saudáveis é universal”, assinala a médica, argumentando que questões estruturais da sociedade brasileira poderiam até mesmo potencializar essa relação. “Por exemplo, no país, muitas mulheres lidam com sobrecarga, sendo as responsáveis pelos cuidados no ambiente doméstico além de trabalharem fora. Uma realidade que, somada à falta de estrutura econômica, tende a deixar esse cenário ainda mais difícil, já que sobrecarga e vulnerabilidade econômica vão impactar na capacidade – inclusive na disponibilidade de tempo – dessas mulheres de realizar investimento na diversificação e qualificação dos relacionamentos”, reflete.

Como o estudo foi conduzido

Os dados sobre o impacto dos relacionamentos para a saúde são do Australian Longitudinal Study on Women’s Health, uma das maiores investigações populacionais já realizadas. Iniciado em 1996, o projeto aplica questionários a cada três anos, colhendo informações que vão de hábitos cotidianos à condição física e emocional das participantes. Para medir a satisfação nos relacionamentos, as voluntárias atribuíram notas de 0 (muito insatisfeita) a 3 (muito satisfeita) em cada uma das cinco categorias citadas. A soma desses escores gera um índice que varia de menos de 5 (satisfação muito baixa) a 15 (satisfação máxima).

Ao adotar esse desenho longitudinal – isto é, medindo as mesmas pessoas repetidamente ao longo do tempo – os autores puderam observar não só quem adoeceu, mas quando e sob quais circunstâncias. Nas análises estatísticas, controlaram fatores clássicos que também interferem na saúde, como renda, escolaridade, tabagismo, índice de massa corporal, prática de exercícios, consumo de álcool e estágio da menopausa. Por fim, para expressar o impacto de cada variável, utilizaram o odds ratio (OR), métrica que compara a probabilidade de um evento ocorrer em grupos diferentes. Um OR igual a 2, por exemplo, significa que um grupo teve o dobro de chance de apresentar o desfecho em relação ao grupo-referência.

O que os dados revelam

Das mulheres que iniciaram o estudo sem doenças crônicas, 58% acumulou multimorbidade no período de 20 anos. Mas esse risco foi distribuído de forma desigual: quem relatou o menor nível de satisfação (abaixo de 5 pontos) apresentou 2,35 vezes mais chances de chegar ao fim da pesquisa com múltiplas enfermidades do que aquelas plenamente satisfeitas (pontuação 15). Mesmo após ajustar todos os fatores socioeconômicos e comportamentais, a qualidade das relações ainda explicou quatro quintos da associação, enquanto tabagismo, sedentarismo, renda e menopausa juntos responderam por 23%. 

Vale destacar que odds ratio não é porcentagem, mas uma razão de chances. No caso deste estudo, um OR de 2,35 significa que, entre cem mulheres muito satisfeitas, 20 desenvolveriam multimorbidade; entre cem muito insatisfeitas, seriam 47. Já multimorbidade não implica gravidade imediata, e sim o acúmulo de diagnósticos que exigem tratamentos paralelos, interações medicamentosas e acompanhamento diversificado.

Os autores também analisaram cada tipo de vínculo separadamente. Relações com o parceiro e com a família tiveram peso maior, seguidas de amizades, colegas e vida social. No entanto, nenhuma categoria isolada superou a força do conjunto. A partir deste achado, os estudiosos levantam a hipótese de que diversificar conexões e sentir-se bem em mais de um círculo funciona como uma rede de segurança.

Outro achado que chama atenção, destacado no parágrafo que abre esta reportagem, é que o impacto de relações insatisfatórias é semelhante ao de fatores de risco consagrados, com o efeito se equiparando ao da obesidade, da inatividade física ou do consumo de álcool. 

Limitações e repercussões

Os pesquisadores reconhecem limitações, como o fato de o levantamento focar apenas mulheres nascidas na Austrália, o que pode reduzir a generalização para outros países ou para homens. Além disso, porque os dados de relacionamento e saúde vêm de questionários autodeclarados, existe margem para sub-notificação ou erro de lembrança. 

Xiaolin Xu, pesquisador adjunto na Escola de Saúde Pública da Universidade de Queensland na Austrália, que liderou o estudo, assinala que, mesmo assim, a grande amostra, o acompanhamento prolongado e o controle de variáveis confundidoras oferecem um nível de robustez raro em estudos sobre vínculos sociais. 

Ele destaca, na publicação, que os resultados da pesquisa têm implicações variadas: individualmente, demonstra a importância de diversificar as relações sociais na meia-idade e mostra que médicos podem incluir, nos inquéritos e aconselhamentos clínicos, perguntas sobre a qualidade dessas conexões; nacional e globalmente, ele sugere que o tema deve ser considerado uma prioridade de saúde pública na prevenção e intervenção em doenças crônicas, citando como bom exemplo a iniciativa de governos, como o do Reio Unido, que instituiu um ministério dedicado ao combate da solidão.