Entrevista

‘A longevidade num país tão desigual é privilégio de poucos’

Jorge Félix é autor do livro 'Economia da Longevidade: o envelhecimento populacional muito além da previdência'


Publicado em 12 de janeiro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Jorge Félix
Professor da Universidade de São Paulo (USP)
Autor do livro “Economia da Longevidade: o envelhecimento populacional muito além da previdência”

A dinâmica demográfica, inédita na história do capitalismo, está construindo uma nova geopolítica. Segundo o autor, o que está em discussão não é o fato de o Brasil envelhecer antes de ficar rico, mas sim em qual economia os países ricos e os pobres estão envelhecendo.

Como você analisa o envelhecimento populacional no Brasil?

Do ponto de vista econômico tem um aspecto positivo, pois a expectativa de vida é o principal indicador de funcionamento do sistema social, político e econômico. Os brasileiros ganharam mais de 40 anos de vida em um século. A grande maioria vive mais e melhor, comparada a pessoas da mesma classe social no início do século XX. No entanto, o aspecto negativo é que a humanidade alterou seu comportamento e optou por delegar a menos seres humanos essa grande conquista que é a longevidade. Ou seja, estamos tendo menos filhos. Isso resulta no envelhecimento populacional. O país precisa ter uma série de requisitos para garantir o sucesso nessa transição. O principal deles é o nível educacional, e o Brasil deixou essa falha. Na minha visão, esse foi o “projeto bem-sucedido” da ditadura militar: uma educação castradora, tecnicista e disciplinadora, e não criativa e emancipadora.

Quais as principais consequências?

Isso limita muito a invenção, a criatividade e a capacidade de renovação dos indivíduos da minha geração, por exemplo, em torno dos 50 anos – educada no regime militar. O envelhecimento populacional é um processo histórico, por isso é preciso analisar o passado e ver como o Brasil se preparou – ou não. Hoje o brasileiro vive 76,3 anos, e a taxa de fecundidade está em 1,7, abaixo do nível de reposição da população (2,1 filhos). Outro aspecto é que o Brasil envelhece sob uma economia dominada pela finança, e não uma economia produtiva. Isso é causa e consequência da carência de criatividade e de inovação. Esse cenário reduz muito as chances de o Brasil garantir que os anos a mais serão com saúde para toda a população. A longevidade num país tão desigual está se tornando privilégio de poucos.

Que fatores influenciam positivamente o envelhecimento?

Um dos principais fatores é a Constituição de 1988, com ampliação da seguridade social, principalmente com o Sistema Único de Saúde (SUS). Mas a Previdência Social por repartição e a assistência social foram relevantes para desvincular extrema pobreza de velhice, que era um vínculo automático no início do século passado. O SUS permitiu a erradicação de doenças que hoje voltam, mas que, durante décadas, estavam fora do quadro epidemiológico. Isso reduz a mortalidade infantil e aumenta a expectativa de vida. A informação também foi importante. Mais informação, mais educação de saúde nas escolas, educação sexual e saúde preventiva. Neste momento, o envelhecer, o longeviver e a velhice são tema em tudo. Quanto mais falamos do envelhecer, sem preconceitos ou restrições, mais iremos envelhecer bem. A informação é fundamental.

O que é a economia da longevidade (“silver economy”)?

É um conceito ainda em construção no mundo, mas, basicamente, é uma estratégia de política industrial adotada pelos países ricos, principalmente depois da crise de 2008. Ela se sustenta em uma visão não fiscalista do envelhecimento populacional, isto é, o envelhecimento não é apenas custo, pode gerar riqueza. Como? Percebendo que as famílias mudaram e que a cesta de consumo também mudará, os países tratam de adotar essa estratégia para investir em pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços que atenderão essas novas necessidades para o bom envelhecimento.

Quais tipos de produtos e serviços?

Como a tecnologia é a mediadora de tudo na vida contemporânea, esses produtos e serviços têm alto nível tecnológico. Daí surge a gerontecnologia. No livro, mostro como os países estão focados nesse segmento. No entanto, no Brasil, a economia da longevidade é excessivamente vista como uma área de marketing. Isso é uma visão antiga e superficial. Lá fora ela é uma política pública e industrial. São produtos desde teleassistência, robóticos, games até nutrição especializada, enfim, uma infinidade de produtos que entrarão para a cesta de consumo dessas famílias com novas necessidades.

Usando o novo conceito, o que seria uma velhice sustentável?

A palavra “sustentável” é multipolifônica. Depende do que se entende por sustentável. Se a palavra “sustentável” é relacionada à questão financeira, precisamos nos questionar se o idoso do futuro, sendo um trabalhador intermitente, por exemplo, o que agora é permitido pela legislação, terá capacidade de poupança para a velhice. Se for no aspecto social, quais as chances ou possibilidades de as pessoas idosas manterem vínculos, relações, apoio psicológico ou se locomoverem nas cidades a ponto de se manterem inseridas na sociedade e não invisíveis.

Você acredita que essa corrida populacional ameaça as democracias?

A corrida populacional é mais um desafio ao poder, à manutenção de políticos no poder. Por quê? Porque equacionar o envelhecimento populacional passou a ser a grande tarefa dos governos. Os países ricos construíram seus sistemas de seguridade social em uma economia com forte presença do Estado. Eu descrevo no livro o quanto isso foi amplo. Agora eles estão sob ameaça, e não acredito que ficarão de braços cruzados assistindo a tudo se desconstruir por uma economia financeirizada. A economia da longevidade é uma dessas respostas. Mas não o suficiente. Então eles estão pressionados, de um lado pela finança e, de outro, pela população vendo o Estado do Bem-Estar Social, que precisou de duas guerras mundiais para ser pactuado, se reduzir. A questão agora é mundial: quem vai pagar pelo envelhecimento de quem?

Qual é o seu palpite?

Acredito que deixo claro no livro. Eu acredito que mais uma vez os países pobres, que foram as antigas colônias, pagarão pelo envelhecimento dos países ricos. A guerra comercial, a inteligência artificial, a exploração dos sistemas de previdência dos países ex-colônias, a exploração dos recursos naturais, seja o petróleo no Brasil, o cobre no Chile, o fosfato no Senegal, quaisquer recursos... Nos séculos passados, a corrida do ouro, a corrida armamentista e o imperialismo estavam preocupados em custear o bem-estar nos países ricos para que a população envelhecesse. Hoje, tudo isso está a serviço de custear a conquista do envelhecimento. A longevidade no mundo é extremamente desigual, entre os países e dentro dos países.

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