Roberto Esporcatte
Cardiologista
Uma das entidades mais sérias do país, a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) criou uma diretriz inédita, recomendando que a espiritualidade seja abordada no atendimento aos pacientes. Quem fala sobre o assunto é o especialista na área e presidente do Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (Gemca).
No último Congresso Brasileiro de Cardiologia foi apresentada a Diretriz de Prevenção, que destaca a espiritualidade como fator a ser abordado dentro dos consultórios. Como foi o processo para se chegar a essa conclusão?
Em 2012, já conversávamos sobre espiritualidade. Em 2013, foi criado o Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular, dentro da Sociedade Brasileira de Cardiologia, e o tema passou a ser recorrente em todos os congressos. Começamos a coletar literatura, artigos científicos e publicações sobre o assunto. O grupo não era religioso, no entanto foi crescendo o entendimento de que os pacientes, especialmente aqueles com doenças crônicas, graves, com múltiplas internações e tratamentos desgastantes, têm expectativa de conversar com seu médico sobre seus valores e sua espiritualidade, gerando uma relação com mais empatia e confiança.
Essa é uma lacuna no cotidiano dos médicos?
Os profissionais de saúde perderam essa conexão com o paciente, mas é fundamental consideramos que ele tem suas práticas espirituais, que pertence a uma comunidade religiosa e que sua crença pode interferir no seu relacionamento com a equipe de saúde e fortalecer seu processo de enfrentamento da doença. É preciso entender como sentimentos, como gratidão e perdão, e até mesmo conflitos espirituais afetam sua saúde. Cerca de 80% da população mundial está ligada a alguma religião ou acredita em um poder superior religioso. A fé tem sido identificada como poderosa força mobilizadora na vida de indivíduos e comunidades. No Brasil, 86,7% dos brasileiros se denominam cristãos.
Existem pesquisas nesse sentido?
Há um conjunto de evidências que demonstram forte relação entre espiritualidade, religião, religiosidade e os processos de saúde, adoecimento e cura. Juntos dos aspectos físico, psicológico e social, eles compõem a visão integral do ser humano. Espiritualidade e religiosidade são recursos valiosos utilizados pelos pacientes no enfrentamento das doenças e do sofrimento. O processo de entender qual a relevância, identificar demandas e prover adequado suporte espiritual e religioso beneficia tanto pacientes como a equipe multidisciplinar e o próprio sistema de saúde. A princípio, a anamnese espiritual como parte integrante da história clínica deve ser obtida junto a todos os pacientes que procuram atendimento médico, mas especialmente naqueles internados com doenças graves, crônicas, progressivas ou debilitantes.
Como esse processo vai ocorrer dentro dos consultórios? O que orienta a diretriz da SBC?
Ela reúne questionários que podem mensurar a escala de religiosidade ou valores espirituais dos pacientes e sugere como devem ser as abordagens profissionais. O profissional deve estimular o paciente a esclarecer os aspectos de sua espiritualidade e identificar se isso está contribuindo ou trazendo algum ponto de conflito que pode prejudicar o enfrentamento da doença. A espiritualidade é um conjunto de valores morais, mentais e emocionais que norteiam pensamentos, comportamentos e atitudes nas circunstâncias da vida de relacionamento intra e interpessoal. A abordagem deve ser feita de forma sensível sem promover a religião ou prescrever orações ou práticas religiosas. Tampouco o indivíduo deve ser coagido a adotar crenças ou práticas específicas.
O que inclui a anamnese espiritual?
Algumas avaliações: importância da espiritualidade ou religiosidade para lidar com a doença, se ela proporciona força, conforto espiritual e paz interior. Avalia a extensão da dor ou sofrimento espiritual, culpa, raiva, tristeza, sentimento de injustiça e medo da morte. É fundamental detectar sentimentos negativos que possam contribuir para o adoecimento ou agravamento do paciente, como mágoa, ressentimento, falta de perdão e ingratidão.
Houve resistência da classe médica em relação à diretriz?
Desde o início dessa discussão houve dúvidas e muita resistência. Muitos médicos não sabem se os pacientes desejam, concordam ou estão abertos a essa abordagem. Houve questionamentos sobre se estariam discutindo religião no ambiente científico, mas hoje a dicotomia entre ciência e religião está cada vez menor. Muitos deles nem sempre conseguem dissociar religiosidade de espiritualidade, há grande superposição de conceitos. Nosso objetivo é trazer a espiritualidade no sentido mais amplo, o da transcendência. A diretriz é fruto de ampla discussão, e o entendimento de diferentes visões nos permitiu chegar até aqui. Destacamos 13 recomendações gerais para se trabalhar com a diretriz. Tudo isso passa pelo bom senso do médico. Um paciente que chega infartando não vai receber esse tipo de abordagem, é claro.
Que evidências científicas nortearam a diretriz?
As taxas de mortes por doenças cardiovasculares por faixa etária estão diminuindo no Brasil, mas o número total de óbitos tem aumentado devido ao envelhecimento e ao adoecimento da população. O Brasil ganhou quase 5 milhões de idosos desde 2012. Eles já somam mais de 30 milhões no total, o equivalente a três vezes a população de Portugal. Pesquisas revelam que níveis elevados de espiritualidade e religiosidade estão associados a menor prevalência de tabagismo, menor consumo de álcool, melhor adesão nutricional e farmacológica no controle do colesterol elevado, da hipertensão arterial, da obesidade e do diabetes.
A meditação foi contemplada?
Em mais de uma centena de estudos analisados e incorporados à diretriz estão relacionados benefícios diretamente ligados à espiritualidade. Um estudo da American Heart Association sobre meditação ressalta a importância da prática para melhorar o controle da pressão arterial, efeitos comparáveis a outras intervenções sobre estilo de vida tais como dieta para emagrecimento e exercício. O documento relacionou benefícios cardiovasculares com a espiritualidade não só na prevenção primária, quando o indivíduo ainda não tem doença cardiovascular. Outro estudo revela efeito direto do perdão no coração de pessoas em contraponto com a raiva. Assim como a gratidão, a resiliência, a meditação e o relaxamento trazem benefícios, como maior adesão aos tratamentos e reabilitação cardíaca mais rápida.
A jornalista Ana Elizabeth Diniz escreve neste espaço às terças-feiras. E-mail: anabethdiniz@gmail.com