Luisa Vilarinho estava insatisfeita com o emprego, o relacionamento e as condições de vida que tinha em Belo Horizonte. Decidiu mudar radicalmente de rumo e, mesmo sem nada concreto, colocou sua mala nas costas e partiu para Portugal.
Lá, conseguiu trabalhar como cozinheira em um ambiente agradável, encontrou um novo amor e passou a morar em um cantinho do jeito que queria, mesmo tendo que dividi-lo com outras pessoas. “Posso dizer, sim, que reencontrei minha essência”, sublinha Luisa.
A história dela é parecida com a de Camila Sgorlon, que, também cansada de um emprego que sugava todas as suas energias no ramo do comércio exterior, passou a trabalhar com calçados, casou-se e virou mãe de dois, recuperando uma inata alegria. “Acho que a vida sempre nos dá oportunidades de mudar para melhor”, afiança Camila.
Os dois exemplos mostram uma preocupação que tem se tornado aguda entre muitas mulheres: o de estarem seguindo um caminho que não foi escolhido por elas, ou que deixou de fazer sentido por um motivo ou outro.
Se no mundo contemporâneo passou a vigorar a máxima de que “o lugar da mulher é onde ela quiser”, não é incomum que haja dúvidas recorrentes sobre o quanto nossas escolhas acabam sendo influenciadas por diversos fatores, como pressão familiar e social, insegurança financeira, falta de oportunidades e etc.
A psicóloga Jaqueline Maia lista alguns sinais que podem auxiliar as mulheres a perceberem se elas estão se afastando do que seria a sua essência, aquilo no que elas realmente acreditam e que fundamenta essa diversidade do seu ser.
“Sintomas físicos como fadiga sem esforço aparente, desânimo, angústia e sensação de desconexão são muito comuns nesses casos, mas um dos sinais mais importantes e alarmantes é quando ela olha para as coisas ao seu redor e diz ‘não me importo’. É quando as coisas para ela já estão tão sem sentido que qualquer coisa que aconteça com ela ou para ela perde o valor e o brilho. Infelizmente isso ocorre quando a situação já está avançada e é por isso que cada mulher deve ter bem estabelecidos os seus valores e prioridades para que se atente quando algo começar a se desviar muito deles”, observa Jaqueline.
Na avaliação da profissional, não se pode ignorar a histórica diferença de gênero que impera na nossa sociedade em relação a mulheres e homens.
“Existem pressões que agem como camadas que vão sendo sobrepostas à identidade feminina desde cedo, como ‘a filha que agrada’, ‘a mulher que cuida’, ‘a profissional que dá conta de tudo’, ‘a mãe perfeita’. A mulher vai tentando se encaixar em tantos papéis que começa a viver para corresponder às expectativas e não para viver a própria verdade. O pior é que isso acontece de forma sutil. Muitas vezes ela acha que está fazendo tudo ‘certo’, mas não percebe que, nesse processo, foi se desconectando do próprio desejo, das próprias necessidades. A sociedade cobra entrega, mas pouco reconhece o preço dessa entrega quando ela vem da anulação”, assegura a psicóloga.
Consequências e soluções
Jaqueline aponta a anulação como uma das consequências mais doloridas e cruéis desse processo de perda da própria essência. “A anulação é uma violência velada. E não quero aqui culpabilizar ninguém. Cada um tem sua responsabilidade dentro do relacionamento e cabe à mulher se posicionar, no entanto é muito nítido ainda que a sociedade intitule como ‘mulher de valor’ aquela que se anula em prol da família”, aponta.
Segundo a especialista, “quando a mulher passa a recalcular seus desejos, opiniões, corpo e até sua voz para manter um relacionamento, ela vai, pouco a pouco, apagando a sua própria existência”. “O relacionamento, que deveria ser um espaço de apoio mútuo, vira um território de perda de si. E o impacto é profundo. Muitas mulheres saem desses vínculos sem saberem mais quem são, com autoestima fragmentada e acreditando que não merecem mais ou que nunca foram suficientes. É um rompimento com a própria essência”, diz Jaqueline.
Para superar esse obstáculo, ela salienta que “o autoconhecimento é o retorno para casa, a reconexão consigo mesma”. “Ele ajuda a mulher a se lembrar de quem ela é além dos rótulos, das feridas, dos traumas e dos papéis que teve que assumir. Quando ela começa a olhar para dentro, a se perguntar o que realmente faz sentido, o que quer manter e o que precisa deixar ir, esse resgate começa a acontecer. E não é um processo linear, é muitas vezes doloroso, mas incrivelmente libertador. É sobre se autorizar a existir de forma inteira”, defende a especialista.
Jaqueline conta que, na sua experiência clínica com a terapia cognitivo-comportamental, os resultados têm sido animadores quando a questão é resgatar essa essência das mulheres nos dias atuais.
“Ela permite identificar e reestruturar os pensamentos disfuncionais que alimentam esse ciclo de anulação. A escrita terapêutica, o uso de metáforas e o trabalho com valores também ajudam muito nesse resgate. Além disso, práticas de reconexão corporal, como o jiu-jitsu, que inclusive pratico e recomendo, e outras, como meditação e yoga, também têm seu valor nessa caminhada para as mulheres. O importante é que ela pratique algo que a conecte com essa essência perdida. O corpo guarda memórias, e acessá-lo de forma segura e consciente pode ser um grande passo na construção de uma nova narrativa sobre si mesma”, assevera, com “justificado otimismo”, a psicóloga.
Respeito a si própria
Nessa delicada equação, Jaqueline deixa claro que é preciso estabelecer uma boa conexão com o próprio corpo, sublinhando que a essência não conversa apenas com a alma e sua subjetividade, mas também aspectos concretos.
“O corpo é onde habitamos, é onde as emoções se manifestam, é onde a história é registrada. Quando a mulher rejeita o próprio corpo, ela está rejeitando também partes importantes da própria história. A autoestima, nesse sentido, é mais do que aparência, é o reconhecimento do próprio valor. Quando a mulher aprende a olhar para o próprio corpo com respeito, como um aliado, e não como um projeto a ser consertado, ela se aproxima do que é real, do que é dela, e não do que foi imposto. E isso tem um efeito direto na reconexão com sua essência”, destaca Jaqueline.
Nesse sentido, os irreais padrões de beleza ditados pela indústria atuariam como os vilões da essência feminina. Jaqueline conclui que, embora longo e árduo, o caminho para reconstruir a própria identidade é o único possível e saudável para as mulheres.
“Tudo começa com sua própria autorização, sua permissão. Permissão para mudar de ideia, para se desapegar do que não cabe mais, para se reconhecer em novos papéis. Eu passei por isso quando me divorciei, onde já não reconhecia quem eu era. Foram dois anos de reconstrução da minha própria identidade. E a reconstrução passou por revisitar a minha própria história com mais compaixão, entender os porquês, mas principalmente os ‘para quês’. Voltei a fazer coisas e sonhar, a ser eu mesma novamente. Muitas vezes, é na simplicidade do dia a dia que a mulher se reencontra, ao se escutar com mais verdade, ao aprender a estabelecer limites, ao escolher com intenção”, arremata.
Redes sociais perpetuam ilusão
Se o essencial é invisível aos olhos, como preconizava o livro “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, é preciso estar atento às armadilhas de um mundo cada vez mais tomado por imagens. A psicóloga Jaqueline Maia faz um alerta em relação às redes sociais, sobretudo para as mulheres que pretendem se reconectar ou encontrar a própria essência.
“As redes sociais potencializaram e aproximaram o ambiente de competitividade e comparação que já havia na sociedade, não apenas entre mulheres. É fácil se comparar, se sentir insuficiente e começar a viver uma vida que parece mais ‘postável’ do que real”, avalia a especialista, com uma crítica à ilusão criada e perpetuada por essas ferramentas, em que “a pose rende mais cliques do que os fatos”.
Na opinião da psicóloga, “a mulher que já está fragilizada emocionalmente pode mergulhar ainda mais nesse universo de filtros, idealizações e julgamentos silenciosos”. “Isso tudo afasta ainda mais a mulher do seu sentir genuíno, da conexão com o corpo e com o momento presente. O desafio hoje é usar a rede como ferramenta e não como referência de valor pessoal”, finaliza Jaqueline.