Secularismo

Filhos de pais não religiosos têm valores éticos mais fortes 

Crianças que vivem em ambiente ateu podem se beneficiar da falta de fé, diz estudo dos EUA


Publicado em 19 de abril de 2015 | 03:00
 
 
 
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Um dos argumentos mais comuns aos que defendem a presença da religião na vida de uma criança é que a fé ajuda a desenvolver fortes valores morais e éticos. Mas pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia – o Longitudinal Study of Generations (Estudo Longitudinal de Gerações) –, que mapeou a relação entre a religião e a vida familiar na população norte-americana por 40 anos, revelou que pais ateus têm conseguido melhor desempenho do que as famílias ligadas a alguma religião. Além disso, segundo o estudo, quando esses adolescentes tornam-se adultos, eles tendem a apoiar a igualdade feminina e os direitos dos gays, ser menos racistas, menos autoritários e em média mais tolerantes que os religiosos.

Os “nones” – como são conhecidas as famílias seculares e, de forma geral, as pessoas que não se identificam com nenhuma religião – estão em ascensão nos EUA e já representam um terço dos adultos com menos de 30 anos. No Brasil, essa parcela da população cresceu 580% nos últimos 30 anos – saindo de pouco mais de 2 milhões em 1980, para mais de 15 milhões de pessoas em 2010, segundo o último Censo do IBGE. Considerando a América Latina, o país é o quarto mais religioso, ficando atrás da Colômbia, Peru e Panamá.

Vinda de uma família desestruturada, com pai alcoólatra e mãe que a abandonou, a assistente administrativa Rejane da Silva, 39, diz que sempre questionou a religião. Ela conta que cria a filha, Hosana, 15, sem tentar influenciá-la.

“Ela terá tempo para fazer suas escolhas, mas acredito que o ateísmo de fato mostra a humanidade. Se alguém tem uma atitude humanitária e é religioso, busca agradar a uma divindade. Se é um ateu, pode ter certeza que a atitude é mais misericordiosa, pois não buscamos alcançar uma recompensa”, diz.

Editor-chefe de uma editora de livros, Hugo Racco, 37, diz não acreditar que filhos de ateus sejam preconceituosos como “os alunos evangélicos que se recusaram a fazer um trabalho sobre a cultura afro-brasileira em Manaus”.

“Não sei se meu filho escolherá ser ateu, crente, espírita ou até mesmo católico. Não me importo. Eu o estou educando e o preparando para ser uma pessoa livre de preconceitos, solícito e que possa ser lembrado pelo que fez de bom. E isso eu considero impossível dentro de uma religião”, diz o pai de Ícaro, 8.

Mas, na maioria das vezes, essa opção é questionada dentro da própria família. É o que conta o ator e dramaturgo paraense Johnny Russel, 35. “Cresci em uma família protestante e, como quase toda criança, eu aprontava muito. Mas quando chegava a noite, eu sempre me lembrava das pregações e acreditava que não teria um lugar no céu. Eu entrava em pânico”, lembra.

Hoje ateu, Russel diz que a família ainda não o aceita. “Continuam fingindo que não veem. Mãe  e irmãos não falam sobre o assunto”, lamenta. Pai de Musa, 10, e de Mateus, 7, o ator teme que os filhos também passem por situações de intolerância religiosa, como as que ele próprio já viveu. “Sempre haverá pessoas intolerantes, e a ignorância é o carro-chefe desse festival de atrocidades. Precisamos de espaços abertos e de pessoas íntegras para mediar esse debate. A partir disso, quando as pessoas puderem falar abertamente das suas crenças e não crenças, quando pudermos respeitar uns aos outros, então seremos de fato cidadãos”.

Diferenças

Conceitos distintos 

Ateu: nega a existência de Deus

Cético teológico: refuta tudo o que possa ser relativo ao divino, inclusive a alma

Agnóstico: não acredita nem nega a existência de Deus.

Deísta: admite um deus, mas rejeita a revelação divina.

Secular: não se enquadra a uma ordem religiosa.

 

Entrevista com a Cineasta belga Sylvia Broeckx - Produziu o documentário "Hug an Atheist" (Abrace um Ateu)

 
1) O Brasil é um país de maioria católica, onde pessoas sem religião ainda não são bem aceitas e parece que nos EUA também. Por que isso ainda acontece?
As pessoas religiosas tendem a igualar a religião com a moralidade para que as pessoas sem religião achem que são pessoas que vivem sem uma bússola moral. Ser ateu significa que você não pode ser uma boa pessoa. Essa é uma mensagem que tem sido passada pela Igreja ao longo dos séculos e infelizmente é difícil de se livrar. Nos EUA há um fator adicional que, durante a Guerra Fria o ateísmo tornou-se associado ao comunismo. Durante esta época, os EUA adotaram um novo lema nacional "In God We Trust" ("Em Deus Nós Acreditamos", em tradução literal), e acrescentou a linha "Under God" ("sob Deus") para a garantia da fidelidade, como um esforço para separá-los dos ateus da Rússia comunista. Por isso, o ateísmo não era apenas amoral; agora era também anti-americano e antipatriótico ser um ateu. Demora um tempo para se livrar dessa imagem negativa.
 
2) Um das maiores criticas as familias seculares é em relação a criação dos filhos, mas estudos vem mostrando que padrões éticos e valores morais independem de religião. E, foi um episódio em escolas que te motivou a fazer o filme. A escola não deveria ter um papel diferente, plural?
É verdade que foi um caso em uma escola que me inspirou a começar a trabalhar com este projeto. Uma estudante, Jessica Ahlquist, ganhou uma ação judicial contra a diretoria da escola West Cranston, porque tinha uma bandeira de uma igreja na sua escola. A bandeira foi considerada inconstitucional com base na Constituição dos Estados Unidos. Estado e Igreja devem ser mantidos separados e a parede que os separa deve ser "alta e inexpugnável". Há uma longa história sobre escolas e religião, desde quando surgiu a primeira escola pública dos EUA no início de 1800. Escolas que mantém o ensino religioso, leituras e orações bíblicas obrigatórias sempre causaram problemas. Católicos e protestantes não concordam sobre qual versão da Bíblia deve ser lida, judeus e cristãos discordam sobre a forma como as mãos devem ser mantidas durante a oração, as Testemunhas de Jeová recusam a jurar fidelidade, os não-religiosas não querem tomar parte de qualquer coisa que confirme uma divindade. Não existe uma só coisa com tamanho suficiente para abarcar tudo envolvido quando se trata de religião. As escolas financiadas pelo Estado podem ensinar sobre as diferentes religiões, mas não podem promover uma religião. Isso garante que todos os alunos sejam tratados de forma igual e nenhum estudante é deixado de fora quando se trata de questões de fé.
 
3) Muitos pais se perguntam se eles podem estar cometendo um erro ao criar seus filhos sem a crença em Deus. O que você diria a eles?
Houve uma abundância de estudos que agora querem provar que criar os filhos com valores seculares proporciona uma base sólida para as crianças. Eles têm fortes padrões éticos e valores morais. E nos dias de hoje há uma abundância de livros e fóruns na internet sobre a paternidade sem Deus para apoiar os pais que podem ter dúvidas.
 
4) Como uma ateia, você ja passou por alguma situação de preconceito? Como foi?
Eu tenho tido bastante sorte. Além de encontrar pessoas rudes que ocasionalmente me dizem que eu vou para o inferno ou que eu estou empurrando ateísmo goela abaixo, minhas experiências como um ateísta tem sido amplamente positiva.
 
5) Com o filme, você quis ajudar outras pessoas. Acha que conseguiu? Qual foi a repercussão?
O retorno que recebi foi muito encorajador. Existem vários grupos em todo o EUA que acolheram as apresentações do filme e todos eles pensam que é um filme que aborda uma série de questões que eles têm enfrentado. Para algumas das pessoas do filme, essa foi a "saída" para se mostrarem às suas famílias. Outros têm compartilhado com os membros da família e amigos religiosos para mostrar sobre como é o ateísmo. Como o ateísmo continua a ser um tema controverso, não é exatamente fácil de entrar no circuito de festivais de cinema documental, que é um pouco decepcionante, mas eu sei que eu tenho feito a diferença na vida de várias pessoas e isso é bom o suficiente para mim.
 
6) Alguma história durante a gravação do filme mexeu com você?
Sempre que as pessoas falavam sobre perda, sofrimento e lidar com coisas tristes, o discurso tendia a ficar bastante emocional, como esperávamos. Fiquei muito grata a todas as pessoas que compartilharam histórias tão difíceis de forma tão aberta comigo. Eu também fiquei realmente tocada pela Ellen, uma menina de 16 anos com paralisia cerebral, que falou sobre como lidar com a doença sendo ateísta e vivendo cercada por pessoas religiosas, o jeito que ela tinha pensado em sua vida, deixar a religião era tão maduro e suas ações são tão corajosas.
 
7) Por que as pessoas devem assistir a esse documentário?
Ateus devem assistir ao filme porque mostra como outro ateu lida com todos os tipos de situações em suas vidas. Ele pode dar uma nova perspectiva sobre certas ideias e afirmar que eles não estão sozinhos, e que outros estão passando pelas mesmas emoções. As pessoas religiosas deveriam assistir ao filme pelas mesmas razões. Este filme é sobre pessoas que poderiam ser da sua família, um amigo, um vizinho ou um colega de trabalho, não é sobre ateus famosos. Pode quebrar alguns dos equívocos que existem sobre os ateus e que passem a perceber que os ateus não devem ser temidos ou criticados, mas aceitos como todos os outros seres humanos.

 

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