O tradicional arranjo de família mudou. A imagem da “família Doriana” – aquela que povoava os comerciais de uma marca de margarina nos anos 90 – dificilmente faz jus à realidade de hoje. O tripé pai, mãe e filhos vem dando espaço para novos formatos. No Brasil, mães e pais solteiros, casais homoafetivos, avós e tios cuidadores são os novos protagonistas.
Exemplo disso é que dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelam que, desde 2005, o perfil composto unicamente por pai mãe e filho deixou de ser maioria. No estudo, em 2015, o tradicional arranjo ocupava 42,3% dos lares pesquisados, uma queda de 7,8 pontos percentuais em relação a 2005, quando a maioria abrangia 50,1% das moradias. Ou seja, formatos diferentes desse já são maioria.
Mães e pais solteiros, divorciados que unem suas famílias, casal de homossexuais que têm filhos de um relacionamento heterossexual anterior, crianças que são criadas pelos avós, pessoas que só tem seu animal de estimação como família, praticantes do poliamor, heterossexuais que adotam, homossexuais que adotam, casais sem filhos, amigos que moram juntos, três gerações que dividem o mesmo teto, casais divorciados que vivem na mesma casa: as possibilidades são diversas.
Mas, mesmo dividindo espaço em termos estatísticos com a conhecida “formação clássica de família”, os demais modelos enfrentam empecilhos para serem aceitos socialmente. Nas últimas semanas, a campanha da Natura do Dia dos Pais com a participação do ator e modelo Thammy Miranda deixou evidente que o assunto ainda é tabu. Thammy, que é trans e pai do pequeno Bento, de 6 meses, fruto do relacionamento com Andressa Ferreira, recebeu inúmeras mensagens transfóbicas nas redes sociais.
“Família é um lugar em que, independentemente de orientação sexual, condição financeira, existe amor, respeito, diálogo, cuidado, afeto. É com quem compartilhamos os problemas e as conquistas”, avalia a presidente da Associação Mineira de Terapia de Família (Amitef), Silvana Garavello.
Mas, afinal, do que é feito uma família?
Depois de quase seis anos na fila de adoção, a contadora Liliane Paula Aparecida, 45, há um mês realizou o sonho de ter a sua família. Mãe solo, Liliane passou uma vida imaginando como seria ter o seu próprio lar. “Tive uma história de vida complicada, vivi para criar meus irmãos, porque eu perdi minha mãe muito nova. Nunca me casei também, mas sempre quis ser mãe. Aos 35 anos, o relógio biológico gritou e decidi que teria a minha família sozinha mesmo. Queria ser mãe, e não avó”, brinca.
Liliane deu entrada no processo de adoção em 2014. De lá para cá, vinha vivendo como se estivesse numa longa gestação. Foram seis anos vivendo um turbilhão de sensações até que, em meio à pandemia, a vida da contadora parece ter ficado completa. “Quando você inicia um processo de adoção você sente tudo que uma grávida sente. Sente enjoo, tem ansiedade, tem medo. Eu acredito que é no coração que nascem as histórias de amor, não precisa ser em uma gestação”, avalia.
“Família é ter com quem contar, é aconchego, e isso eu tenho de sobra. Criei meus irmãos sem a presença de um homem, e estamos todos bem. Adoção é uma forma legítima de constituir uma família. O Benício precisava de uma mãe e eu queria um filho, então pronto. Eu só peço a Deus que me dê todos os dons de ser uma boa mãe”, conta, emocionada.
Há sete anos, a servidora pública Juliana Gomes, 42, adotou com a sua companheira Luiz Felipe, de 13 anos, e Igor, de 11 anos. Juntas há 20 anos, Juliana e a empresária Cristiane Rezende têm tido a sensação de que as coisas têm ficado mais difíceis. “A gente acha que com o passar do tempo a sociedade vai se educando, mas não. Hoje, penso que a seria mais difícil, porque não sei se existe mais intolerância, mas os intolerantes estão tendo mais espaço, e isso assusta”, desabafa.
“Na internet as pessoas se mostram. Mas no dia a dia o que eu vejo é que as crianças são muito mais abertas que os adultos, criança não tem preconceito. Os amigos dos meninos (os filhos dela) até acham o máximo a história de ter duas mães. Se todas as famílias tivessem o trabalho de educar conversando que o diferente não é anormal, viveríamos em uma sociedade sem espaço para intolerantes. Tudo é conhecimento. Meu pai vai fazer 80 anos, é de outra geração e convive muito bem. No início era difícil me aceitar, entender a questão da adoção, mas hoje é a prova de que tudo é educação”, afirma.
Preconceito
Segundo o último Censo realizado pelo IBGE, no Brasil, as famílias homoafetivas já somam 60 mil, sendo 53,8% delas formadas por mulheres. Ainda de acordo com o levantamento, mulheres que vivem sozinhas são 3,4 milhões, enquanto 10,1 milhões de famílias são formadas por mães ou pais solteiros.
Para a presidente da Associação Mineira de Terapia de Família (Amitef), Silvana Garavello, mesmo em meio a avanços tímidos, a tendência é que o preconceito comece a ser desfeito a partir do momento em que o “conceito” sobre família for encarado de maneira diferente. “A diversidade não traz patologias ou distúrbios de comportamento diferentes dos que já acontecem nos modelos tradicionais de família", avalia a especialista.
Como funcionam a licença-maternidade e a licença-paternidade para casais homoafetivos?
Quando um casal hétero tem um filho, a mulher fica entre 120 a 180 dias afastada do trabalho e, o pai entre cinco e vinte se a empresa estiver cadastrada no programa Empresa Cidadã. Em uma sociedade heteronormativa, é difícil pensar como as leis se aplicam para casais homoafetivos. Mas como a legislação se aplica aos casais formados por dois homens ou duas mulheres?
De acordo com a segunda vice-presidente do Instituto dos Advogados de Minas Gerais e especialista em direito de família, Sofia Miranda, a Constituição reconhece o casamento entre pessoas do mesmo gênero, mas não há lei específica que trate, por exemplo, de licença-maternidade ou paternidade para casais homoafetivos. A saída é apelar para a Justiça ou seguir o regimento que trata de adoção.
Em casos de um casal lésbico, em que uma das mulheres engravida, a advogada explica que apenas uma das mulheres têm direito ao equivalente à licença-maternidade, enquanto a companheira precisa buscar na justiça um direito equivalente à licença paternidade. Já no caso de duas mulheres que adotam um filho, apenas uma delas tem direito à licença-maternidade. “Casais homossexuais têm exatamente os mesmos direitos familiares e sucessórios dos casais heterossexuais. Assim, um casal de lésbicas adotantes, sendo ambas empregadas contratadas e regidas pela CLT, uma poderá pleitear o direito à licença-maternidade. A mãe adotante terá o mesmo direito à licença-maternidade que a mãe gestante”, destaca.
Em casos de homens adotantes, a situação é a mesma caso as duas partes do casal sejam empregados em regime CLT. “Um dos pai vai ter direito à licença maior, o equivalente à licença-maternidade. Sobre a licença paternidade para a outra parte do casal, independentemente de o casal ser formado por homens ou mulheres, existem discussões e projetos em tramitação no Congresso que querem prever que outra parte do casal tenha direito à licença-paternidade, mas ainda não é uma garantia prevista”, ressalta.