Aos 5 anos, Badu já acompanhava o pai raizeiro mata a dentro, lá pelas terras do Quilombo Mato do Tição, em Jaboticatubas, a pouco mais de 60 km de Belo Horizonte. Foi ali, ainda criança, crescendo em meio a 12 irmãos, que ele começou a aprender os primeiros ensinamentos sobre agricultura e homeopatia. Hoje, aos 88 anos, repassa seus conhecimentos não só para os filhos, mas também para a comunidade quilombola e para universitários que vão até lá. “A natureza é a maior faculdade que existe”, diz seu Badu.
O primeiro professor foi o pai, Benjamim Siqueira. Mas é com a mãe Terra que Seu Badu continua aprendendo todos os dias e, além da tradição, ele transforma os saberes em um complemento da renda, produzindo florais, medicamentos homeopáticos e adubos orgânicos que ele vende, mas também doa a quem precisa.
“Quando meu pai morreu, eu tive necessidade de seguir. Eu planto e colho tudo nas matas. E para mim é o seguinte, se a pessoa puder pagar o remédio, ela leva. Se não puder pagar, leva também. Nem só de sabedoria é feita a homeopatia. Ela é feita de mistério. E o que é de mistério, a gente não pode cobrar”, explica Seu Badu, que é muito procurado. “Olha, vem gente de todo canto atrás do meu pai”, conta Denise Siqueira, uma dentre os 11 filhos dele.
Seu Badu dá aula de ‘Tópicos sobre aspectos da cultura africana e afro-brasileira: aprender na escola da natureza’. A disciplina faz parte Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mas não é ele quem vai até a universidade. Acompanhado de professores da UFMG,o mestre recebe os alunos no quilombo e, ali mesmo, o quintal vira sala de aula.
“O conhecimento é o seguinte, a pessoa não pode ter esse preconceito de passar só na família. Meu interesse é que você saiba a mesma coisa que os meus filhos porque se um dia uma pessoa daqui do quilombo precisar de um ensinamento, às vezes meus filhos podem não estar, mas você vai estar. E quanto mais gente aprender, melhor”, afirma seu Badú.
E muita gente tem aprendido mesmo. O coordenador do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, César Geraldo Guimarães, ressalta que o interesse pela disciplina do Seu Badu foi tão grande que registrou cerca de 90 inscrições para 20 vagas. “O interessante é que, embora essas comunidades afro indígenas disponham de formas de transmissão interna de conhecimento bem vinculadas às especificidades de seus territórios, elas também têm uma forma muito generosa de fornecer os saberes. Lá, a cultura é da dádiva, é aberta aos outros”, analisa Guimarães.
Segundo o professor, o grande intuito é fazer com que a universidade abra espaço para outros saberes e modos de vida. “Por muito tempo, ela ignorou esses mestres e mestras como portadores de conhecimentos essenciais.. Eles eram tratados, no máximo, com objetos de estudo. Agora, eles deixam de ser objeto de estudo e passam a ser sujeitos, que expandem o universo da universidade. E no fim, quem mais aprende é a universidade. É um método que gera mais reflexão e induz à transformação”, explica Guimarães.
Reconhecimento ao mestre
Seu Badu é reconhecido pela UFMG como Mestre Pesquisador. “Ele faz parte de um grupo de pesquisadores e já está estudando formas de combate à praga vassoura de bruxa, que acomete o cacau na Bahia. “Além de participar dando aulas, nós queremos que esses mestres e mestras também contribuam com seus conhecimentos para a pesquisa”, explica o coordenador do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, César Guimarães.
O mestre raizeiro e homeopata do Quilombo Mato do Tição também é um forte candidato a receber o título de Doutor por Notório Saber.“Já existe um grupo de professores preparando o memorial dele, que é a primeira etapa para essa candidatura, mas ele reúne todas as condições para ser um doutor, haja vista o conhecimento ancestral que herdou dos seus antepassados do modo de vida quilombola, vinculados à homeopatia e experimentos onde ele usa técnicas muito originais criadas por ele”, defende o professor.
Curso de Saberes Tradicionais
O Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi criado há dez anos, com o objetivo de fazer com que a universidade abrisse espaço para outros saberes e modos de vida. “Se por muito tempo, ela ignorou esses mestres e mestras como portadores de conhecimentos essenciais. Eles eram tratados, no máximo, com objetos de estudo. Agora, eles deixam de ser objeto de estudo e passam a ser sujeitos, que expandem o universo da universidade”, explica o coordenador César Geraldo Guimarães.
O programa nasceu como um desdobramento de políticas inclusivas e afirmativas, para trazer mestres e mestras de outros saberes de comunidades afro indígenas, rompendo a lógica eurocêntrica do ambiente universitário. “Esses mestres e mestras estabelecem forte relação com elementos da natureza, eles não fazem separação de corpo, mente e espírito.”, explica o professor.
Segundo Guimarães, quando um mestre e mestra dá uma aula, dentro das comunidades, eles permitem que os alunos tenham contato com a experiência e geram inquietação e reflexão. “Eles aprendem sobre modos de vida e os pensamentos dessa comunidade, vendo tudo de dentro. Os mestres e mestras são muito generosos, partilham o conhecimento e atuam como verdadeiros diplomatas na maneira de lidar com as diferenças. Não são objetos de estudo, mas sujeitos de conhecimento que, ao chegarem, expandem o universo da universidade e deixa o modo de conhecimento menos mono epistêmico e, assim, contribui para um movimento de transformação”, analisa.
Segredo dentro de uma garrafa pet
É no quintal do Seu Badu que a sabedoria é transmitida. Entre frutas e plantas medicinais, ele vai compartilhando explicações sobre a força da natureza e o poder de cura da homeopatia. A terra é curiosamente seca. Tão seca que chega a causar um sentimento de contradição. É porque quem olha para tantos pés de mexerica, pequi, banana, urucum, muitas verduras e legumes, inevitavelmente se pergunta: como é que dá tanta coisa ali, num solo visivelmente ressecado?
Parte dessa resposta está numa garrafa pet, ou melhor, na ciência do saber tradicional. Seu Badu mostra, orgulhoso, um adubo natural que ele mesmo faz. “Esse aqui é o EM, microrganismos eficientes”, explica.
O produto é feito a partir do arroz cozido só com água, sem sal e sem gordura. Depois, ele é colocado em um recipiente, que parece uma calha de bambu. “A gente leva para mata, cobre com umas folhas de bananeira para proteger. Ali, os microrganismos da mata são capturados. Depois a gente mistura com um melaço de açúcar mascavo e espera”, explica o mestre.
O processo de fermentação dura de 15 a 20 dias. Durante esse tempo, é preciso fazer um verdadeiro exercício de vigília: ir abrindo a garrafa algumas vezes ao dias, para ir liberando os gases. “Aí você pega 1 ml e mistura em 1 l de água e usa ele na terra com o tempo fresco, nas primeiras ou últimas horas do dia”, compartilha o mestre.
Talvez venha mesmo dessa garrafa muitas explicações. Como por exemplo o fato de a terra da chácara de Denise Siqueira estar tão fértil. Uma dentre os 11 filhos vivos de Badu, ela confessa que até arrisca uns chás de homeopatia, mas o que aprendeu mesmo com o pai, e aplica diariamente, são os segredos da agricultura, um saber que Denise transformou em negócio.
Denise mostra orgulhosa a plantação de urucum, que ela mesma planta, colhe e produz o chamado coloral. “Eu tenho uns 50 pés, mas a minha meta é chegar a 100 ou 150 pés”, sonha. Na região de Jaboticatubas, o produto é muito conhecido, e também já é vendido em feirinhas em Belo Horizonte. “Olha, meu coloral já foi para vários lugares: para o Espírito Santo, para o Rio de Janeiro e até para Espanha. Pessoal vem para as festas religiosas da cidade e leva”, conta Denise orgulhosa.
De início, eram poucos pés. “A gente plantava e não nascia. Aí meu pai foi me ensinando a cuidar da terra. Ele falava: ‘não é assim’. Antes, fazia tudo no pilão, mas ele pediu um moço para fazer uma máquina ligada na energia e eu fui entusiasmando e comecei a vender. Agora, minha semente chega a não dar, por isso eu quero plantar ainda mais”, conta Denise, que fez da tradição familiar um sustento.
Ela também vende temperos, pimenta e sabão, tudo feito por ela. Mas a verdadeira paixão é o urucum e ela faz questão de mostrar cada pezinho. “Eu sou apaixonada pelo meu coloral. Dá vontade de ficar o dia inteiro só apanhando. Puxei esse prazer de ficar no meio da natureza do meu pai. E quando a gente mexe com o que gosta, faz com amor”, destaca Denise.