Nascido em 1649, em São Paulo, Manuel de Borba Gato faleceu, em 1718, aos 69 anos de idade, quando ocupava o cargo de Juiz ordinário da vila de Sabará. Aliás, cogita-se que seu corpo esteja enterrado entre as montanhas mineiras, em Sabará ou Paraopeba. Seja como for, a estátua localizada na confluência das avenidas Santo Amaro e Adolfo Pinheiro, em São Paulo, que o homenageia - e que foi incendiada neste sábado - vem sendo alvo de reiterados protestos nos últimos anos. O episódio de agora levanta novamente a discussão sobre o papel do bandeirante, de um modo geral, na escravidão de índios e negros no Brasil no século 18.
Na verdade, o papel desses homens na interiorização do País e a condição de símbolo do Estado têm sido cada vez mais questionados - mesmo porque, além de caçar, aprisionar e traficar a população indígena, há fartos registros de estupros e mortes. Mas vamos voltar uma pouco no tempo: os bandeirantes eram homens que trabalhavam na região Sudeste com a exploração de minérios, escravização de indígenas e captura de escravos fugitivos no século 17. Não eram, contudo, conhecidos como "bandeirantes" durante a época em que atuaram. A historiadora Iris Kantor, professora de historiografia colonial na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), reforça que o termo foi cunhado por historiadores contemporâneos, como Affonso Taunay, que dirigiu o Museu Paulista a partir de 1917. Até então, eram conhecidos apenas como "paulistas" ou sertanistas. São Paulo, vale lembrar, estava na margem da colônia brasileira; foi, por muito tempo, uma região indígena e jesuítica, e veio a se urbanizar com maior intensidade apenas no final do século 19.
Em entrevista ao Estadão, em junho do ano passado, o historiador Casé Angatu, professor da Universidade Federal de Santa Cruz (UFSC), na Bahia, lembrou que a homenagem aos bandeirantes por meio de estátuas decorre de dois momentos definidores: a partir da década de 1870, durante a Belle Époque brasileira, em que se buscou “europeizar” arquitetonicamente a cidade de São Paulo, e na década de 1950, que retoma o ideário bandeirante no seu quarto centenário. “As homenagens simbolizam uma tentativa de a capital se desvincular de suas origens indígenas, negras, caboclas e caipira para se aproximar de uma metrópole europeia”, disse ele.
O ponto de virada, ainda de acordo com ele, começa com a desmistificação do mito bandeirante nas escolas, a partir do uso da lei 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Neste processo, fica possível compreender que as maiores heranças dos povos indígenas não estão em monumentos, mas sim nos costumes dos paulistas - como o sotaque. “A cidade tem uma das maiores populações indígenas do Brasil em números absolutos. Não dá mais para excluí-la do cotidiano”, disse ele, à época.
Borba Gato era filho de João de Borba Gato e Sebastiana Rodrigues, e casou-se em 1670 com Maria Leite, filha do bandeirante Fernão Dias Paes Leme e de Maria Betim. Em 1681, teria se desentendido com um fidalgo, D. Rodrigo de Castelo Branco, matando-o - mas teria negociado o perdão com as descobertas de veios de ouro no rio das Velhas. Importante ressaltar que há outra versão sobre o crime, mas, de qualquer forma, sobre o passado escravagista do bandeirante não há dúvida.
O Códice Costa Matoso, documento de 1730, por exemplo, diz: «A Justiça que achei nestas Minas de Sabará foi o Tenente-General Borba Gato, que era superintendente destas minas, homem paulista. Repartiu as lavras de ouro por sortes de terra e veios d'água, como mandava o Regimento, confiscava todos os comboios do sertão, boiadas, cavalos e negros. E tudo o mais que apanhava, tudo confiscava, até o ouro que ia para os sertões da Bahia se arrematava para o Rei. Esta era a ocupação que tinha Borba. Também havia contendas e como juiz supremo deferia a todos com muito agrado e desejava favorecer os confiscados. Tinha meirinho e escrivão e muita gente para as diligências do confisco".
Vale dizer que, nos tempos do Orkut, mais precisamente em 2007, o jornal Extra fez um reportagem mostrando o quanto Borba Gato já gerava discussões por meio de comunidades como Eu Odeio o Borba Gato ou Eu Tenho Medo do Borba Gato. Já a comunidade Playmobil Gigante, por seu turno, tratava de criticar a estátua, que sempre foi comparada ao famoso brinquedo. Nesta mesma matéria, um dos entrevistados, o ator Paulo Cesar Pereio, que fez um curta sobre Borga Gato, disse: "Os bandeirantes abriram caminho para nossa civilização perpetuar crimes como estes que ocorrem até hoje. Borba Gato ficou famoso por massacrar índios e estuprar índias. Enriqueceu explorando ouro em Minas Gerais. Chegou a ser acusado de assassinato, mas como se tornou rico, escapou impune das acusações".