Andrei César da Silva Euler trabalhava de 10 a 12h por dia como motorista de aplicativo e, no resto do tempo que tinha, cuidava das filhas em casa. Mas, no dia 19 de junho de 2021, quando ele tinha 43 anos, sua família foi deixada por conta própria depois que ele morreu, vítima da Covid-19, muito provavelmente após contrair a doença enquanto levava diversas pessoas pelas ruas de Belo Horizonte em meio à pandemia. Por conta disso, sua mulher e as duas filhas pequenas ganharam, no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) o direito a uma indenização de R$ 600 mil, além de uma pensão a ser paga pelo aplicativo de transporte 99. 

A reportagem de O TEMPO teve acesso à decisão judicial nesta quinta-feira (16). No pedido de indenização, a família de Euler argumentou que ele era o principal provedor de renda, atuando desde março de 2019 pelo aplicativo, com uma renda média de R$ 1.500 por mês. O processo cita, inclusive, que ele era muito bem avaliado na plataforma, com uma nota média de 4,94 e 5,00. 

"O finado também era o responsável por oferecer às filhas as condições emocionais de uma convivência familiar saudável, haja vista que participava de todas as atividades domésticas, dando o suporte nas questões do dia a dia, em relação tanto às tarefas da casa quanto com os cuidados das filhas", argumentou a família, que acrescentou ainda que ele possivelmente pegou a doença no trabalho, já que passava 12h por dia no veículo e, o restante do tempo, em casa, em ambiente controlado. 

Ainda conforme a decisão do TRT, a 99 argumentou no processo que não reconhece a prestação de serviço do motorista, uma vez que ele foi quem "contratou a plataforma para captação de passageiros a fim de efetuasse o serviço de transporte individual", e que a Covid não seria considerada um acidente de trabalho, uma vez que trata-se de uma "doença com contágio incontrolável". O aplicativo ainda pediu que o processo corresse em "segredo de Justiça", o que foi negado pelo tribunal. 

Em sua argumentação, a juíza Silene Cunha de Oliveira, contestou os argumentos da 99. "Se por um lado essas empresas se apresentam extremamente inovadoras quando se trata de gerar valor e acumular capital, por outro elas se utilizam do mais tradicional e ortodoxo modo capitalista de produção e reprodução de riqueza: a extração do excedente da força de trabalho", disse. 

Diante disso, a magistrada determinou que a plataforma indenize a família em R$ 600 mil e arque com o tratamento psicológico das crianças, além do pagamento de uma pensão mensal de R$ 1 mil para cada uma delas, até que a mulher do motorista complete 76 anos e até que as filhas atinjam os 24. 

Procurada, a assessoria de imprensa da 99 informou apenas que "não comenta processos ainda em andamento na Justiça". 

Caso não é o único, mas decisão é inédita no país

Pedro Zattar, advogado que representou a família de Euler no processo, conta que existem diversos casos semelhantes, sendo que somente seu escritório atua em pelo menos 10 processos contra aplicativos de transporte de passageiros. "Famílias que perderam o provedor, ou até trabalhadores que ficaram com sequelas. O Andrei morreu novo, sem ter nenhuma doença preexistente, trabalhando por mais de 10h ao dia sem nenhuma proteção, mesmo quando tudo estava fechado", conta. 

Ainda segundo o defensor, essa é a primeira decisão do tipo em todo o Brasil. "Esse processo não vai trazer o marido e pai delas de volta, mas foi muito importante pois marca um precedente para reconhecer direitos desses motoristas e entregadores de plataformas digitais, que ficaram a pandemia inteira trabalhando, na maioria das vezes, de maneira precária. E a juíza entendeu que ele estava exposto a uma atividade de risco, sendo reconhecida a morte em decorrência do trabalho", completa o defensor.