Todas as manhãs, a copeira Fernanda Gomes, de 43 anos, preparava café para a filha Ester, de 20. Em 2020, porém, a bebida ficou mais amarga do que nunca e jamais voltou a ser a mesma. A doçura daquelas manhãs, proporcionada pela presença de Ester, foi substituída por uma ausência capaz de fazer doer até a alma. Fernanda viu a filha ser morta a tiros pelo ex-companheiro.
Desde então, o início do dia, o café e a vida nunca mais foram os mesmos. Fernanda ainda prepara a bebida, mas falta alguém para apreciá-la. A copeira nunca poderia encontrar açúcar que dê jeito no gosto amargo e desagradável da morte. Porém, ela tomou uma decisão: dedicaria sua vida para que outras pessoas jamais tivessem de experimentar o sabor repulsivo de uma perda tão violenta.
Dor virou ajuda para outras mulheres
Neste 19 de junho, Dia do Luto, Fernanda é um dos exemplos de quem fez da ausência, presença, e conseguiu ressignificar a falta, a morte. Hoje, ela atua fortemente na conscientização de outras mulheres sobre o que é relacionamento abusivo e como identificar pequenos sinais, que muitas vezes começam com a violência psicológica. Para ela, esta é uma forma de fazer com que a voz de Ester jamais se cale, por mais que a jovem já não seja capaz de falar por si só.
“A minha filha tem voz. Não quero que ela seja mais uma na multidão. Eu não tenho medo de ir a lugar algum com esse objetivo. Não quero que outras mães vivam essa dor e luto por isso”, diz ela.
Assim como Fernanda, milhares de outras pessoas que perderam alguém querido procuram formas de lidar com a dor, de ressignificá-la e transformá-la em uma batalha por um ideal. A solidariedade, o cuidar do outro estão entre elas. Criar projetos, associações, escrever livros contando experiências são outras. Cada luto é único, assim como cada ser humano, conforme destaca Thales Coutinho, professor de psicologia da Estácio Belo Horizonte. E cada indivíduo o elabora de uma forma.
“O luto difere de pessoa para pessoa. Um fator que influencia, nesses casos, é a resiliência. Quem tem essa característica consegue elaborá-lo mais rapidamente”, diz ele. Segundo o especialista, há algumas fases que envolvem esse período, como a negação e o convencimento – o que não significa que aconteçam de maneira linear. É um conjunto de reações emocionais que, pouco a pouco, cada um administra a seu modo.
Para se chegar até esse estágio de elaboração do luto e de transformá-lo em luta – por quem ficou, por quem se foi, por quem ainda vai –, porém, há muitos desafios no caminho.
Auxílio em forma de livro
Autora do livro “A Lua e o Girassol”, Marina Fiúza perdeu o irmão em um acidente de carro em 2012. Anos depois, escreveu um livro que conta histórias de mães que perderam seus filhos. Em meio aos aprendizados que envolvem a morte e como lidar com ela, Marina destaca a importância da sensibilidade para que essa caminhada se torne um pouco mais leve.
“Não existe um ‘modelo’ sobre o que dizer. As pessoas, em geral, ficam constrangidas quando vão lidar com uma pessoa que perdeu alguém. A intenção é boa, mas às vezes começam a fazer comparações ou a dizer coisas como ‘eu sei exatamente como você se sente’, mas isso pode soar muito errado ou até ‘diminuir’ a dor do outro”, diz ela.
Para Marina, que hoje consegue falar da morte de forma mais natural, a sociedade ainda não sabe lidar com pessoas em luto – ora cobra que o enlutado fique bem logo, ora julga a pessoa por estar sorrindo pouco tempo depois de perder alguém.
“A sociedade não dá espaço para o luto, embora a morte seja uma certeza. A morte revela uma vulnerabilidade que quase ninguém está disposto a encarar. Então se evita falar. Para as crianças, as pessoas dizem que quem faleceu ‘virou estrelinha’. Outras vezes, preferimos usar a palavra ‘partiu’”, diz.
Entretanto, Marina aprendeu que tristeza e felicidade podem coexistir e que é possível fazer da própria vida uma homenagem a quem já se foi. “Apesar de tudo, existem momentos bonitos. Uma homenagem que podemos fazer para quem morreu é viver da melhor maneira possível”, afirma.
A vivacidade das lembranças
Quando se fala em morte, o tempo pode ser bastante relativo. O luto, em geral, conforme explica Thales Coutinho, professor de psicologia da Estácio Belo Horizonte, dura cerca de dois anos de uma forma mais intensa. Mas nem sempre é assim com todas as pessoas.
“O luto é normal. Porém, se ele não passa, se a pessoa continua com saudade desproporcional por muitos anos, que impede de ver a alegria na vida, é importante procurar ajuda profissional”, afirma ele. “Muitas vezes, a pessoa começa a ficar disfuncional, começa a ter problemas no relacionamento, no trabalho, na vida acadêmica e precisa de acompanhamento para tratamento”, salienta.
Apoio a Perdas Irreparáveis
No entanto, para manter as lembranças, não há tempo nem espaço. Muitos anos separam a perda de Glaucia Tavares, psicóloga e presidente da Apoio a Perdas Irreparáveis (API), da perda de Alexandra Andrade, uma das diretoras da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do Rompimento da Barragem da Mina do Córrego Feijão em Brumadinho (Avabrum).
A filha de Glaucia morreu aos 18 anos, em 1998, em um acidente. O irmão e o primo de Alexandra, de 42 e 35 anos, respectivamente, foram duas das 272 vidas perdidas no rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em 2019.
Glaucia, ainda em 1998, fundou a API, rede em que pessoas que vivenciaram perdas compartilham experiências e apoiam umas às outras. Alexandra luta para que a tragédia em Brumadinho jamais seja esquecida e para que a “justiça seja feita”, diz ela. E, assim, a memória de quem se foi também permanece viva – não importa quantos anos já tenham se passado. E quem ficou permanece atuante, mantendo essa chama de amor e luta acesas.
“Nós lutamos por justiça, memória, não repetição do que houve, para que outras famílias não passem pelo mesmo e para que outras pessoas não percam a vida”, diz Alexandra. “Eu acho que, se eu não estivesse tentando fazer nada, eu estaria mais incomodada, meu sofrimento seria maior. Pelo menos eu tenho um alento de que estou tentando fazer algo”, destaca.
Para Glaucia, ao longo dos anos, se percebe que vínculos afetivos não se rompem: eles se transformam. “É muito interessante avaliar de que maneira a gente pode conviver com o que a gente chama de ‘ausência presente’ e ‘presença ausente’, diz ela. “Lidar com as perdas é um desafio e um exercício de humildade (...). É um trabalho de aceitar aquilo que não é desejável, e isso requer humildade e uma disposição para contínuos aprendizados”, afirma.
E um dos aprendizados diante da morte, segundo a copeira Fernanda Gomes, que abre esta matéria, é: “Nós temos força”.