"O que nos mata não é a arma branca, mas a chacota, a piadinha, a falta de oportunidades. É a depressão provocada por não fazer parte, não poder estar presente e ocupar espaços". O relato é de Nichary Ayker, uma mulher trans de 38 anos, que nasceu e vive em Belo Horizonte. Assim como outras mulheres e homens trans, ela também é vítima de diversas violências, sejam elas estruturais ou físicas. Agressões que violam corpos e direitos. "As vezes é muito difícil falar a palavra resistir, porque até quando a gente vai ter que aguentar, que lutar contra as pessoas? Nós sempre temos que bater de frente, sabe? Só nos deixem viver, existir, ocupar um espaço que também é nosso por direito", desabafa.

O pedido de Nichary Ayker reflete a realidade de um país que desde 2008 lidera o ranking mundial como aquele que mais mata pessoas trans e travestis. Segundo o Dossiê Assassinatos e Violências contra travestis e transexuais brasileiras, feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no ano passado, pelo menos 131 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil. Os números são superiores aos registrados por países como o México e os  Estados Unidos, que aparecem em segundo e terceiro lugares, respectivamente. Minas Gerais é o quarto Estado do país, com 8 mortes de trans e travestis registradas no último ano. Pernambuco foi o estado que mais registrou assassinatos, com 13 casos, seguido por São Paulo (11) e Ceará (11).

"As pessoas acham que a gente se coloca no lugar de vítima. Se nós falamos dessa forma, é um desabafo também, uma chance que a gente encontra de mostrar para  as pessoas o quanto elas estão nos matando, principalmente ao tirar essas oportunidades", expõe Nichary. Os poucos espaços encontrados por ela para expor os desafios que fazem parte da sua realidade, faltam para outras mulheres trans e travestis. Conforme o levantamento da Antra, elas têm até 38 vezes mais chances de serem assassinadas em relação aos homens trans e às pessoas não binárias. Das 131 mortes registradas pelo estudo em 2022, 130 foram de mulheres trans e travestis.

"É uma violência totalmente provocada pela cultura que a gente tem, que ainda é conservadora. Eu cheguei a acompanhar por um tempo algumas casas de acolhimento de pessoas trans e o que a gente percebe é que são corpos que sofrem violência direta. Somos o país que mais mata essa população, que não respeita nome social, que mantém esse lugar de marginalização de corpos trans", relata o psicólogo e especialista em diversidade Daniel Amancio. Para o profissional da saúde, essas violências fazem com que essa população esteja mais exposta a diversos problemas clínicos, como a depressão e a crise de ansiedade. "São violências que têm requintes de crueldade. Isso porque elas fazem com que essas pessoas criem uma personalidade enfraquecida, e nem todos têm estrutura emocional para lidar com isso", alerta.

Essa influência social, que em sua maioria resulta em um sentimento quanto a necessidade de aceitação e pertencimento a todo ambiente à nossa volta, também afeta o comportamento e as decisões de Gabriela Sofia de Oliveira, de 23 anos. Moradora de Contagem, na região Metropolitana da capital, ela se reconhece como travesti, condição essa que lhe expõe a uma série de transgressões. "Desde que eu me reconheço é assim. Eu sabia que essa dificuldade um dia iria vir à tona. A gente tem que provar a todo tempo, não só no trabalho, mas também na família, na escola. E mesmo assim, a gente nunca é aceita", relata.

A condição de violência pela qual essa minoria sexual está exposta se acentua quando consideradas questões como raça e classe social.  O dossiê feito pela Antra também mostrou que as vítimas são, em maioria, mulheres trans e travestis negras e empobrecidas. O estudo indicou que 76% delas eram negras e 24% brancas. Para Gabriela Sofia de Oliveira, que se reconhece como uma travesti preta, essa é mais uma condição a ser superada no dia a dia. “As pessoas costumam validar a gente pela capa. E tem uma barreira nisso, já que elas apontam o dedo o tempo todo. Fazem com que a gente tenha que mostrar o dobro daquilo que a gente é”, expõe. 

Virada de chave

Para essa população, que convive com a constante violação de direitos e a falta de oportunidades, a prostituição é a escolha mais comum. Muitas dessas pessoas optam por esse modelo de vida para conseguir uma fonte de renda e, assim, se distanciar de algumas das violências que ocorrem principalmente no ambiente familiar. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) apontou que a independência financeira é um dos principais objetivos da população LGBTQIAPN+. Esse desejo, no entanto, não está associado somente à conquista de bens, mas à condição de uma vida com mais segurança e direitos garantidos.

“A independência financeira representa uma emancipação desse lugar que está sendo violento, seja na família, no trabalho. A pessoa consegue ir para longe disso e se manter ali. Só que essa condição leva um tempo, a gente sabe como é a construção de qualquer carreira. Imagina, então, se você tem atravessamentos de violência, onde fica ainda mais difícil você terminar os estudos, de ter qualquer tipo de apoio. Mas para essa população, a independência financeira é, sim, essa expectativa de fugir da violência”, explica o psicólogo e especialista em diversidade Daniel Amancio.

O caminho encontrado por Nichary Ayker, de 38 anos, em busca da sua independência financeira se difere ao que é percorrido pela maior parte da população trans e travestis. Aos 21 anos, ela decidiu empreender. A atividade remunerada começou quando Nichary se apresentava como drag queen. “Sempre trabalhei como uma artista drag queen, transformista. E nessa caminhada fui conhecendo outros coletivos e isso foi somando ao meu trabalho. Foram aparecendo oportunidades”, lembra.

Em um desses encontros, ela conheceu Nathan Phillip. A proximidade entre eles despertou em Nichary o desejo de se profissionalizar. Foi por intermédio deste amigo que ela começou a fazer um curso de especialização voltado para a população trans, que é oferecido por um coletivo do Rio de Janeiro. “Eu me inscrevi e tive a sorte de passar no processo. Durante o curso, fiquei na dúvida do que fazer. Mas ele me fez perceber que as pessoas trans que me antecederam fizeram tanto por mim e a partir disso comecei a me questionar: por que não fazer o mesmo pela minha comunidade?”, conta. 

A partir do estudo, Nichary decidiu criar o Espaço Transbordar, o primeiro bar itinerante de Belo Horizonte. O negócio, que teve início em 2022, além de garantir a renda dela, também possui uma proposta social, já que emprega somente colaboradores trans. “Esse é o perfil das pessoas que trabalham comigo. Hoje, somos uma equipe com seis colaboradores e a gente sempre procura dar oportunidade para que outros possam trabalhar também, fazer um ‘freela’”, relata.

Embora não se tenham dados oficiais sobre o número de empreendimentos voltados ao público LGBTQIAPN+, especialistas indicam que esse é um segmento de mercado que está em constante crescimento em Minas Gerais. Um levantamento feito pelo site Guia Gay apontou que a capital mineira é a segunda do país com mais estabelecimentos para essa minoria sexual. São cerca de 50, o que deixa Belo Horizonte atrás somente do Estado de São Paulo.

“Quando você tem um nicho de mercado, atende determinado grupo consumidor, isso é muito bom. Você está oferecendo um produto de acordo com o perfil, hábitos e interesses dessas pessoas. Então isso faz com que você consiga se destacar. É melhor também para o marketing, para procurar fornecedores”, aponta a economista da Câmara de Dirigentes e Lojista de Belo Horizonte (CDL/BH), Ana Paula Bastos. 

O especialista do Sebrae Minas, Rafael Gregório, também destaca essas iniciativas e afirma que elas possuem um potencial transformador não apenas para quem decide empreender, como também para a rede de pessoas próximas. Isso ocorre quando esses negócios adotam uma causa social. “A gente está quebrando essa heteronormatividade e criando oportunidades de geração de renda, de trabalho, de abertura de negócios com o protagonismo dessa comunidade. Consequentemente, a gente passa a ter também um mercado mais inclusivo, que vai oferecer serviços, experiências e produtos que atendem as demandas dessa população”, relata. 

Este protagonismo, citado pelo especialista do Sebrae, foi conquistado por Gabriela Sofia de Oliveira quando decidiu empreender. Ela se especializou em tranças, um penteado de cabelo, abriu um salão de beleza e, além de atender clientes, começou a vender cursos. A procura é grande. Para conseguir uma vaga  na agenda da profissional, os interessados precisam marcar com pelo menos cinco dias de antecedência. “Isso começou quando eu fiz alguns vídeos e publiquei no Instagram e no TikTok. Os vídeos foram compartilhados várias vezes e viralizaram. Foi a partir disso que decidi vender os cursos, com certificado, apostila. Só eu sei o quanto eu trabalhei para chegar até aqui”, conta. 

Rede de Apoio

Além de fonte de sustento, o empreendedorismo LGBTQIAPN+ tem como potencial conectar pessoas que fazem parte dessa comunidade. É a partir dessa aproximação, que elas compartilham experiências e conseguem se ajudar diante da falta de oportunidade e das constantes violações morais e físicas. Em Minas Gerais, por exemplo, a cada dia do ano passado, pelo menos uma pessoa foi vítima de homofobia e transfobia. O levantamento da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública indicou que foram 377 casos entre janeiro e outubro de 2022. 

“Eu criei a minha loja para ser um local de acolhida, para que as pessoas pudessem se encontrar, conversar. Por isso fiz questão de ter esse espaço físico. Faz parte da minha proposta oferecer também essa questão afetiva. Muitos jovens frequentam a loja acompanhados dos pais, de outras pessoas da família e dos amigos. Então, mais do que o meu negócio, a Savassi Pride é também um espaço dessas pessoas”, relata a empreendedora Naiara de Castro Silva, dona de uma loja de vestuário e acessórios na região Centro-Sul de Belo Horizonte. 

Essa também foi a proposta de Elismar Marcelino, conhecido como Bobby. Ao perceber a dificuldade de diversos casais homoafetivos em organizar suas cerimônias de casamento, ele decidiu abrir a In Par. “Todas as pessoas que chegam até mim, queixam do atendimento que tiveram com outros fornecedores. O mercado ainda não sabe lidar com casais LGBTQIAPN+. Eles ainda têm aquela ficha de inscrição noivo e noiva. Alguns chegam a perguntar: mas cadê a noiva? Cadê o noivo?”, conta. 

O cerimonialista viu neste modelo de negócio uma oportunidade para realizar não apenas o seu sonho, mas o de tantas outras pessoas que fazem parte dessa minoria sexual. “Quando a gente entrega um casamento, esse é um ato político”, relata. Para ele, é importante que gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e outros não abandonem as causas deste grupo, mesmo após terem conquistado uma melhor condição financeira e de vida. “A partir do momento que você levanta uma bandeira, você tem que representá-la”, completa Bobby.


* Esse conteúdo faz parte da série de reportagens "Para sair do vermelho, o segredo é colorir", da rádio Super FM 91.7. Os episódios serão exibidos ao longo da programação de segunda-feira (30) até a próxima quarta (1º/2).