para salvar vidas

'MG precisa melhorar a organização da captação de órgãos', diz especialista

Confira entrevista com o cirurgião Agnaldo Soares, coordenador de transplante de fígado da Santa Casa de BH, sobre como a pandemia afetou a doação

Por Cinthya Oliveira
Publicado em 21 de janeiro de 2022 | 03:00
 
 
Agnaldo Soares Lima é uma das maiores referências na área de transplante em Minas Gerais Foto: Videopress Produtora

Referência na área de transplante em Minas Gerais há quase 30 anos, o cirurgião Agnaldo Soares Lima foi um dos profissionais que percebeu uma grande queda no número de captação de doadores no estado nas últimas semanas. Mesmo que as cirurgias possam ocorrer com doadores falecidos de outras partes do país, a atual situação preocupa o médico, que é coordenador do Transplante de Fígado da Santa Casa de Belo Horizonte. Conversamos com ele sobre como a pandemia afetou a doação de órgãos Minas e porque é tão importante investir em soluções para salvar o máximo possível de vidas.

 

Dr Agnaldo, como foi o processo de realização de transplantes ao longo da pandemia?

Nós vivemos uma situação muito difícil no início da pandemia. As doações praticamente sumiram nos primeiro e segundo mês da pandemia. Depois elas voltaram, mas tivemos uma queda de cerca de 40% no ano de 2020. Essa diminuição variou de órgão para órgão, de pulmão foi muito pior, a de fígado foi uma das menos afetadas, mas deixamos de transplantar várias pessoas que estavam precisando. Em 2021, houve uma recuperação, mas agora estamos preocupados, porque em Minas a situação de doação diminuiu demais no começo de ano. Em Belo Horizonte a gente não tem visto uma captação de órgãos, enquanto a gente continua percebendo a atividade de transplante no restante do país.

 

Vivemos momento de recrudescimento da pandemia, por causa da ômicron. Como a Covid interfere na doação ou recepção de um órgão?

Interfere muito. É obrigatório que todo doador seja testado com PCR e, em caso de positividade, ele não é doador mais. Por outro lado, o paciente que é chamado para receber um órgão é testado e se testar positivo também (deixa de ser receptor). Ele não perde a inscrição na fila, mas vai ter que esperar espera pela melhora da infecção e depois voltará a ser chamado. Nas duas pontas do processo, a Covid atrapalha.

 

A Covid pode realmente oferecer um risco a uma pessoa que precisa do transplante e está positivada?

A princípio, é pelo risco mesmo que a infecção representa para quem vai receber. Pouco se conhece ainda da infecção da Covid, mesmo que as implicações respiratórias eram mais presentes nas cepas anteriores. Mas também outras questões são afetadas pelo Covid, como coagulação e efeitos trombóticos. É claro que é temerário você levar um paciente para cirurgia de grande porte como é um transplante, porque depois vai ser imunossuprimido, vai ter uma série de repercussões no organismo, e ainda acrescentar esse risco do Covid.

 

Por que o processo de captação de doadores deve ser tão rápido?

Os órgãos funcionam em uma situação normal do corpo, com a circulação de sangue, sendo nutridos e oxigenados pelo sangue. Naquele momento em que a gente faz a retirada do órgão do doador, a gente tem pouco tempo em que consegue conservar o órgão para que depois volte a funcionar no outro corpo onde foi implantado. Cada órgão tem a sua característica. O coração, por exemplo, tem tempo curto de 4 a 6 horas. Fígado pode ficar de 8 a 12 horas, dependendo das condições do doador, o rim tolera um pouco mais de tempo, de 12 a 24 horas. Mas sempre muito apressado. Uma das questões mais importantes para um órgão funcionar bem é o tempo curto entre a retirada do órgão do doador até implantar no receptor. Por isso a gente tem toda essa cronometragem, todo esse trabalho de acertar para que não demore o processo.

 

Depois de constatada a morte encefálica, o sistema de saúde tem quanto tempo para fazer essa retirada do órgão do doador?

Não existe um número preciso de horas. Mas esse tempo é curto porque o doador está instável, ele não vai ficar indefinitivamente naquela situação. A gente consegue mantê-lo por algumas horas numa situação em que os órgãos possam ser aproveitados. Conforme vai se passando o tempo, pior é a qualidade dos órgãos. Até chegar um ponto, em que a gente não vai mais poder utilizar. Apesar de não haver um número preciso, fechado de horas, o benefício é de ser o mais curto possível.

 

Minas é o segundo Estado do país em número de habitantes, mas apenas quinto em número absoluto de doadores e 11º em número de doadores por milhão. O que podemos fazer para melhorar o posicionamento do Estado?

Vem sendo o feito um trabalho pelo MG Transplantes para aumentar o número de equipes credenciadas para diagnóstico de morte encefálica e treinar profissionais que atuam junto às famílias no momento da doação. Esse trabalho foi iniciado há alguns anos e já rendeu frutos. Em 2019, Minas Gerais foi um dos estados que mais aumentou o número de doações. Esse trabalho foi perdido na pandemia, a gente teve uma redução no número de doadores em relação aos anos precedentes e ficam as bases para melhorar. Mas ainda temos muitas dificuldades porque temos municípios muito numerosos e pequenos, temos dificuldade com transporte nos aeroportos no interior de Minas e por causa das estradas, então temos barreiras que representam dificuldade para termos mais doadores.

Mas principalmente precisa melhorar a organização da captação de órgãos, porque outros estados que também têm dificuldades, inclusive financeiras, se organizaram melhor e têm um numero maior de doadores do que Minas Gerais.

 

Muitas famílias ainda recusam a doação. Como podemos resolver esse problema?

Essa parte do familiar é uma questão de esclarecimento. As campanhas para doação de órgãos não deveriam ser tão pontuais, deveriam ser mais constantes e de formas diferentes. Por exemplo, falar nas escolas para as crianças, para já crescerem com a ideia da doação. Falar com as pessoas de formas diferentes, não só eventualmente quando novelas falam de transplante ou quando um programa fala de transplante, o tema tem que estar presente na vida das pessoas. Uma dificuldade que a gente tem é das pessoas levarem para casa seus conceitos e falarem para a família: “eu sou doador de órgãos”. Porque a família respeita isso depois. Numa hora difícil como a hora da doação, essa questão já tem que estar resolvida na família. E não a pessoa ter que decidir no momento de dor.

 

Por que é tão importante o Estado investir na captação de doadores?

A resposta mais simples é atender as pessoas que estão na fila pelos transplantes. Mas antes disso, é uma obrigação do Estado. A gente tem a organização nacional do sistema de transplante, que é federal, mas em cada estado as centrais de captação são responsáveis pelo processo de abordagem das famílias, do processo de captação de órgãos, do transporte das equipes. Isso é uma atribuição do estado. Para que seja viabilizado esse processo de transplante, de atender as pessoas que necessitam, precisa ser bem desempenhado pelo estado.