Minas Gerais teve um aumento de 42% no número de mortes de pessoas LGBTQIA+ em 2021. Com isso, é o terceiro Estado com mais registros no país. O dado preocupante é apenas “a ponta do iceberg de ódio”, já que é resultado de levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Não há números oficiais por parte das esferas governamentais. Quem enfrenta o luto por perder familiares e amigos pelo preconceito cobra justiça e, principalmente, respeito.
Em todo o Brasil, pelo menos 300 homicídios e suicídios foram registrados na população LGBTQIA+. O número teve acréscimo de 8%, já que em 2020 ocorreram 237 mortes violentas, segundo o GGB. Minas Gerais passou de 19 óbitos para 27, ficando atrás apenas de São Paulo, que lidera a estatística (42), e Bahia (32).
“O aumento dessa média é por uma série de questões: pessoas estão denunciando mais, a imprensa tem dado espaço maior no noticiário aos casos, e estamos nos organizando em todos os Estados brasileiros”, diz Toni Reis, diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+, que auxilia no levantamento do GGB.
Escalada de violência contra a população LGBTQIA+
Os números, conforme alertado por Reis, mostram a escalada de violência. “Nosso levantamento é apenas a ponta do iceberg de ódio. A realidade, com certeza, é muito mais dura, pois não temos os dados de cidades do interior, onde tudo é muito mais camuflado”.
Os gays foram as principais vítimas no ano passado (153), e as travestis, transexuais e mulheres trans vêm na sequência (110). Reis cobra políticas públicas de combate à LGBTQIA+fobia. “Ainda há muito preconceito e discriminação. Evoluímos muito nos direitos formais, mas há um setor radical da sociedade que quer nos eliminar. Apenas com educação, empatia, sensibilização e respeito poderemos reverter o atual cenário”.
A luta pelas políticas públicas esbarra justamente na falta de dados oficiais. “Nossos levantamentos são importantes, mas precisamos ter dados com a chancela do Estado brasileiro. Queremos ter a real dimensão da população LGBTQIA+. Hoje falamos que somos 5% da população, mas percebemos que, na verdade, somos 10%. Só que não temos dados concretos até mesmo para cobrarmos na defesa da cidadania”, diz Reis.
Violência não é combatida em BH
A ausência do combate à violência contra o público LGBTQIA+ é lamentada pela vereadora de Belo Horizonte Duda Salabert (PDT). “As Casas Legislativas ainda são muito conservadoras e acabam ignorando e virando as costas para esse cenário de violência. É muito triste ver o Brasil liderar por 14 anos consecutivos o ranking de países que mais matam travestis e transexuais do planeta. Mais triste ainda é ver que nada é feito”.
O conservadorismo é apontado por Reis como uma das razões para o avanço ainda não acontecer no meio político. “No Congresso tem uma bancada que não nos tira da cabeça, se organiza para ser contra nossos direitos”.
Violência ao extremo marca os homicídios de LGBTQIA+
A brutalidade é uma marca constante nos homicídios contra a população LGBTQIA+. O levantamento do GGB mostra que as chamadas “armas brancas” (faca, facão, tesoura e enxada) foram usadas pelos agressores em 85 casos. “A violência sempre vem acompanhada de requintes de crueldade. A pessoa é apedrejada, morta com muitas facadas, muitos tiros, espancada e por vezes tem até órgãos sexuais mutilados”, destaca Reis.
A violência é presença constante na sociedade brasileira, no entanto, é aumentada contra pessoas LGBTQIA+. “O Brasil é um país violento, mas conosco ocorre um tempero odioso, em sua maioria. Ela é hiperbolizada, exagerada, e é isso que difere”, alerta a vereadora Duda Salabert, primeira mulher transexual eleita para o cargo em BH e a mais votada da história da capital mineira.
Sofrimento sem fim
O professor Onírio Carlos Silvestre, de 58 anos, passou a integrar as estatísticas de mortes violentas após ser brutalmente executado com uma faca cravada no peito em Curitiba (PR), em dezembro de 2021. “Ele tinha um relacionamento homoafetivo, e o próprio companheiro o matou. Utilizou uma faca enorme e abandonou o corpo do meu irmão dentro do apartamento em que eles moravam. Como eu e minhas irmãs moramos em Ponta Grossa, fomos avisados pelos vizinhos que um forte cheiro vinha do imóvel”, relata a aposentada Eralda Potma, de 62 anos.
A família de Silvestre pensava que o ente havia falecido por problemas cardíacos, no entanto foi surpreendida. “Fomos informados que o Onírio foi morto com três facadas e que uma delas foi tão intensa que a faca quebrou no peito do meu irmão”.
‘Cansado de sofrer’
O levantamento do GGB aponta ainda o suícido de LGBTQIA+. No ano passado, 24 pessoas morreram por essa tipificação. O professor Lucca Gomes, de 23 anos, trafegava pela BR–381, entre Naque e Periquito, quando invadiu a contramão da rodovia federal e bateu em um caminhão. A moto pilotada pelo jovem trans ficou completamente destruída, e ele não resisitiu aos ferimentos.
“Lucca sofria transfobia no dia a dia, e isso acabou sendo o grande motivo do sucídio. Em uma carta de despedida ele falava que estava cansado de sofrer o preconceito e preferiu ir embora desse jeito”, comenta Thales Cotta, de 33 anos, que era amigo da vítima.
Ver o preconceito ceifando a vida do amigo deixa Cotta reflexivo diante do cenário de intolerância em Minas e no Brasil como um todo. “Também sou uma pessoa trans e sofro este tipo de preconceito na minha vida. A gente tem medo de sofrer nas ruas. Fico pensando que o Lucca tinha uma vida pela frente, tanto para viver e contribuir no mundo. É bem triste e difícil até de comentar. Em pleno século XXI temos quem não respeita o próximo por ele ser a pessoa que é”.
Penalizar é preciso
Como se não bastasse a falta de dados oficiais, outro ponto que, segundo Reis, favorece a ocorrência dos crimes contra LGBTQIA+ é a impunidade. “A não punição aos perpetradores dos crimes dá salvo-conduto para que continuem espancando as pessoas, pois sabem que não serão punidos. É preciso se fazer cumprir a criminalização da LGBTQIA+fobia”.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu criminalizar a homofobia como forma de racismo em junho de 2019. Na época, a Corte declarou a omissão do Congresso Nacional em aprovar a matéria e determinou que casos de agressões contra o público LGBTQIA+ sejam enquadrados como crime de racismo até que uma norma específica seja aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. A pena varia de um a cinco anos de reclusão.
Com as eleições deste ano, Reis espera que ocorra renovação para que as pautas em defesa dos LGBTQIA+, mulheres, indígenas e do meio ambiente, por exemplo, possam sair do papel. “Na Suprema Corte não se mistura política com religião. Estou muito esperançoso em termos uma bancada mais progressista. O Estado é para servir as pessoas, e não para ser servido”.
Acolhimento que ameniza a dor
Trinta e três anos já se passaram desde que Bruna Alves de Oliveira, de 31 anos, foi morta. O que não passa, pelo contrário, é a dor e a saudade que a mãe dela, Fernanda Tilepa, de 63, sente. “Minha filha trabalhava em um show quando foi colocada dentro de pneus e incendiada. Queimaram ela viva. Um crime muito cruel, um ato de crueldade forte demais”.
Diante de tanta saudade e revolta pelo crime cometido contra Bruna, que era uma mulher trans, a aposentada vai para a memória relembrar os momentos. “Minha filha era uma menina bem-sucedida, muito obediente, tinha independência. Ajudava os avós e a mim também. Sempre muito presente”, desabafa.
Desde que teve a filha brutalmente morta, a vida de Fernanda mudou completamente. “O sentimento de dor nunca passa, e o que penso é que nunca passará”. Para ajudar a seguir em frente, a aposentada colocou em prática um projeto que a filha tinha: de ter uma casa para ajudar pessoas necessitadas, dentre elas o público LGBTQIA+.
“A Casa Mãe Vovó Solidária acolhe desde criança até a feliz idade. Este era o sonho da minha filha: um projeto para ajudar todos”. Ainda em vida, Bruna já ajudava mulheres trans. “Ela fazia perucas e entregava no alto da Afonso Pena. Depois se sensibilizou com as necessidades que as meninas passavam e começamos a levar comida, fruta e suco em uma Kombi para elas”.
O luto diante da morte da filha fez Fernanda demorar a engrenar com o projeto idealizado por Bruna. Mas foi com ele que ela disse ter encontrado forças para seguir com a vida. “A Casa me deu o direito de viver novamente, mesmo com a dor que carrego”.
Mais de 3.000 pessoas já foram assistidas pelo projeto, que é mantido com doações. “Entregamos cestas básicas, acolhemos algumas famílias. A Casa abraça e é uma igualdade social para mostrar que aqui todos são acolhidos. Dentro de mim sinto a força que vem da minha filha. Este projeto me faz sentir completa, mesmo até hoje nenhum suspeito da morte ter sido preso. A Casa me deixa mais próxima da minha filha. Meu coração jamais descansou”, finaliza.
A Casa Mãe Vovó Solidária está localizada na rua José Maria Vieira, nº 100 (antiga rua Setenta e Um), bairro Nova York, em Venda Nova, Belo Horizonte.
Mortes violentas de LGBTQIA+ por Estado em 2021
Levantamento realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) aponta Minas Gerais como o terceiro Estado com mais homicídios em todo o Brasil. Trezentos homícidios foram contabilizados.
- São Paulo - 42
- Bahia - 32
- Minas Gerais - 27
- Rio de Janeiro - 26
- Paraná - 19
- Ceará - 17
- Pará - 17
- Pernambuco - 16
- Mato Grosso - 15
- Alagoas - 13
- Espírito Santo - 8
- Amazonas - 7
- Goiás - 6
- Maranhão - 6
- Mato Grosso do Sul - 6
- Paraíba - 6
- Santa Catarina - 6
- Distrito Federal - 5
- Rio Grande do Norte - 5
- Sergipe - 5
- Piauí - 3
- Rondônia - 3
- Rio Grande do Sul - 3
- Amapá - 2
- Acre - 1
- Tocantins - 1
- Não informado - 3
Fonte - GGB, 2022