Na contramão: à medida que a população aumenta, o número de ônibus disponíveis para os usuários do transporte público diminui em Belo Horizonte. Nos últimos cinco anos, a capital mineira ganhou 29.125 moradores. No mesmo período, 10% dos coletivos deixaram de circular pelas ruas e avenidas da cidade. A frota também envelheceu. Em 2018, os coletivos tinham, em média, cinco anos e dez meses de uso. Já em 2023, o tempo de uso passou para seis anos e oito meses. Enquanto isso, passageiros convivem com uma rotina de desconforto, atrasos e estresse.
A superlotação e as condições precárias dos veículos, com vidros quebrados e falta de manutenção, além do descumprimento do quadro de horários, são desafios diários para quem necessita dessa modalidade de transporte para chegar ao trabalho ou ir a um local de lazer. Um cenário de problemas que, nos últimos cinco anos, afastou mais de um quarto dos usuários do transporte coletivo. Entre 2018 e 2022, houve queda de 103 milhões de passageiros no sistema de ônibus da capital.
“Está muito precário, impossível. É superlotação, falta de manutenção. Teve um dia em que o pessoal pediu o motorista para parar e desceram do ônibus por causa do calor, o ar-condicionado não estava funcionando”, denuncia o auxiliar administrativo Lucas Dias, de 27 anos, que utiliza o transporte público por ônibus durante cinco dias da semana para se deslocar ao trabalho, no bairro Cidade Nova, região Nordeste da capital. A crítica é reforçada pela doméstica Maria Aparecida Pereira, de 54 anos, que também utiliza coletivos para ir ao trabalho. “Sem condições. A gente utiliza porque não tem outra alternativa. É algo muito ruim, com o metrô em greve ou não. Ônibus sujo, cheio, ar-condicionado não funciona direito. É estressante”, relata.
Os questionamentos do auxiliar administrativo e da doméstica se somam aos dos demais usuários do transporte coletivo na capital. Conforme o levantamento da Superintendência de Mobilidade de Belo Horizonte (Sumob-BH), o descumprimento do quadro de horário e a superlotação dos veículos são as principais causas de insatisfação entre os passageiros. Esses problemas também podem ser citados como consequência da redução da frota disponível na cidade. Um relatório apresentado pela BHTrans indicou que 279 ônibus deixaram de atender os usuários do transporte coletivo desde 2018. Naquele ano, a frota da capital contava com 2.680 veículos, quantidade que era 10% maior em relação aos 2.401 que estão disponíveis hoje na capital.
“A redução de frota nunca é algo positivo para uma cidade, porque o investimento no transporte público precisa ser justamente o contrário. A gente precisa incentivar que as pessoas usem o transporte, mas que ele ofereça mais qualidade. Então o investimento de órgãos gestores é extremamente importante”, aponta a especialista em trânsito Roberta Torres. Segundo a especialista, embora pareça simples, essa é uma questão bastante complexa, já que, culturalmente, o poder público desenvolve políticas voltadas ao transporte privado, e não ao coletivo. “O que a gente vê é investimento em vias mais largas, construir novas pistas. É raro a gente ver recursos sendo destinados a criação de outros tipos de modais, como o metrô ou o VLT (veículo leve sobre trilhos). Então isso afasta mesmo as pessoas”, completa.
A insatisfação com o serviço oferecido foi o que motivou a pedagoga Vanessa Alves, de 25 anos, a acelerar o processo de compra do seu automóvel. A profissional, que passava cerca de quatro horas por dia para fazer o trajeto de ida e de volta da casa ao trabalho, optou por um empréstimo para conseguir comprar um carro popular no ano passado. A decisão, segundo ela, foi motivada pela precariedade dos ônibus e também pelo tempo gasto nas viagens.
“Foi algo pensado no meu bem-estar. Eu gastava muito tempo no trajeto para o trabalho. Desde que comprei o meu carro, consegui reduzir cerca de 30 minutos. É muito pouco, porque o trânsito da cidade é complicado. Só que, para quem tem uma jornada longa como a minha, esse tempo ajuda muito”, relata. Para além do tempo que conseguiu poupar, Vanessa Alves, que foi diagnosticada com condropatia patelar, uma lesão na região do joelho, afirma que a substituição do transporte público pelo seu automóvel particular também foi uma forma de cuidado com a saúde.
“Por causa da dor, eu sempre procurava um lugar para me sentar e ficava onde dava. Só que, na maioria das vezes, era na escada”, lembra. O desconforto, segundo a pedagoga, se intensificava durante o trajeto por causa do balanço e da lotação dos coletivos. “Os ônibus chacoalham, tem a questão do calor, sem falar que estão sempre lotados. Você entra na parte da frente e sai por lá mesmo, não atravessa a roleta de tão cheio”, recorda.
Ranking de reclamações
A superlotação dos coletivos e o estado de conservação dos veículos aparecem, respectivamente, em segundo e em quarto lugar no ranking de reclamações dos usuários do transporte coletivo, que é desenvolvido pela Sumob-BH. O descumprimento do quadro de horários lidera os questionamentos. Para o especialista em trânsito Silvestre Andrade, essa insatisfação, que resulta no afastamento dos usuários do transporte público, serve de alerta para as autoridades, já que outros problemas podem surgir como consequência desse abandono.
“É uma realidade que não é boa para a cidade, já que o transporte público é o modo mais eficiente, principalmente em relação à mobilidade. Um ônibus ocupa um espaço na pista com 40 pessoas, um automóvel vai com três. Então, à medida que as pessoas deixam o sistema público, isso cria um problema sério, que vai além da mobilidade e passa por áreas como as de segurança e meio-ambiente", alerta o especialista em trânsito Silvestre Andrade.
O especialista entende como algo desafiador encontrar soluções para os diversos problemas no transporte público. No entanto, aponta que essas melhorias passam, principalmente, por um maior número de veículos disponíveis, além da prestação de um serviço de qualidade, de modo a ser atraente para a sociedade. “Ele tem que ter qualidade, ser confortável, não atrasar, ser rápido. Não tem que ter ônibus com o banco balançando ou com água entrando durante a chuva. O poder público tem que regular esse serviço e adotar uma fiscalização para conseguir uma padronização naquilo que é oferecido”, completa.
Pandemia e distanciamento do transporte público
A Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans), que é a responsável por desenvolver o planejamento da mobilidade urbana em toda a capital, justifica a queda no número de passageiros e também de coletivos como consequência da pandemia da Covid-19, que se iniciou em março de 2020 e seguiu com medidas sanitárias de restrição de circulação de pessoas até o ano de 2022.
“A queda de demanda ocorreu em todos os sistemas de transporte de Belo Horizonte: táxi, escolar e transporte coletivo/ suplementar, apesar das ações realizadas pelo município para garantir a continuidade dos serviços”, disse a empresa responsável por gerenciar a mobilidade na capital.
O período de crise sanitária também foi apontado pela BHTrans como o motivo do aumento da idade média dos coletivos. “O envelhecimento da frota também está diretamente relacionado à pandemia e ao impacto gerado na cadeia produtiva como, por exemplo, fabricação de veículos novos”, justificou, indicando que, conforme contrato de 2008, a compra e a manutenção dos coletivos são de responsabilidade das empresas que atuam no transporte público da capital.
Para o especialista em trânsito Silvestre Andrade, a pandemia da Covid-19 tem sua parcela de responsabilidade no afastamento dos usuários do transporte coletivo. No entanto, segundo ele, o período de crise sanitária não é o fator principal para essa redução. “A diminuição da frota é uma consequência da redução da demanda. Mas esse problema, de forma geral, é político. O município e o Estado investem muito pouco em alternativas de transporte. É a mesma linha de metrô, por exemplo, há cerca de 30 e 40 anos”, justifica.
Silvestre também acredita que o sistema de transporte convencional de Belo Horizonte, onde os ônibus e os automóveis dividem a mesma pista, cria problemas ao modelo público e afasta ainda mais os usuários. “Quando você está na mesma pista, você até tem a mesma velocidade de um carro, mas precisa parar no embarque e desembarque, o que atrasa a viagem. E isso é mais um problema para as pessoas que precisam desse transporte”, reforça.
A especialista em trânsito Roberta Torres reforça a tese de Silvestre Andrade. Ela destaca a iniciativa do Programa de Requalificação do Centro de Belo Horizonte, o “Centro de Todo Mundo”, que prevê a implantação de 17,2 km de faixas exclusivas para ônibus. “Ainda que exista planejamento de até cinco anos, é um dado positivo, a gente espera que esse tipo de investimento continue. Isso dá mais celeridade ao transporte coletivo”, explica.
Uma vida “no busão”
A má qualidade do transporte público de Belo Horizonte tira tempo de vida dos passageiros. A cada ano trabalhado, a costureira Simone Teixeira, de 56 anos, perde praticamente um mês sentada nos ônibus. O deslocamento de ida e volta dela de casa, em Venda Nova, para o trabalho, no bairro Horto, na região Leste da capital, demora seis horas, sendo três na ida e três na volta. Em cinco dias de trabalho por semana, ela gasta 30 horas no trânsito. Em 12 meses, levando em conta apenas 22 dias úteis em cada um deles, daria 660 horas, ou 27 dias.
“A vida toda eu utilizo transporte público, e a impressão que dá é que piora ano após ano. Os ônibus estão cada vez mais cheios. Se você arredar o pé, você perde seu lugar. Sem falar no tempo que demora. A verdade é que o tempo que a gente leva no ônibus cansa muito mais do que o trabalho, e isso está estressante para todo mundo”, relata a costureira.
Um estudo apontou que, em 2022, o tempo médio de locomoção no transporte público em Belo Horizonte é de 61 minutos. A capital é a terceira do país com o maior tempo de deslocamento, atrás somente do Rio de Janeiro e de São Paulo. Os cariocas, segundo o estudo, passam, em média, 67 minutos em viagem; já os paulistas, 62 minutos. Os dados são do Relatório Global divulgado pelo aplicativo Moovit, uma empresa de mobilidade urbana. O levantamento considerou cem grandes metrópoles em todo o mundo, sendo dez delas no Brasil.
A pesquisa também indicou que, em Belo Horizonte, os passageiros costumam aguardar mais de 20 minutos pelo transporte público. O tempo médio de espera é de 24 minutos. A capital é a segunda entre as brasileiras com maior tempo médio. Recife é a que possui o maior tempo médio de espera, com 27 minutos. Brasília e Salvador aparecem em terceiro lugar, com 23 minutos.
“O Move melhorou muito a nossa situação, mas ainda é algo que deixa a desejar. O intervalo das viagens é muito longo, e, quando os ônibus vêm, dependendo do ponto ou até mesmo da estação, eles não param. Andam todos cheios”, conta a doméstica Maria Aparecida de Paula, de 53 anos, que utiliza o transporte público para se deslocar ao trabalho de segunda a sexta-feira.
A profissional gasta cerca de duas horas por dia para se deslocar da sua casa até o trabalho. São pelo menos dois ônibus para que ela consiga fazer o trajeto do bairro Floramar, na região de Venda Nova, até a estação de mesmo nome e, em seguida, até o seu local de trabalho, na avenida Cristiano Machado. “É uma rotina que cansa muito. Além da demora, os ônibus pulam demais porque o asfalto é ruim. Sacoleja tanto que parece que você está na carroça de boi”, relata.
A doméstica é mais uma usuária de transporte público que faz baldeações para chegar ao destino desejado. Em Belo Horizonte, segundo o estudo do Moovit, 13,5% dos passageiros fazem a transição entre um transporte e outro, uma possibilidade que começou com o Move, implantado em 2014. A capital mineira é a segunda do país em números de usuários que mais fazem baldeações, atrás de Curitiba, com 27,7%. “Essa possibilidade ofertada pelo Move melhorou muito o transporte público em Belo Horizonte, mas ainda está aquém do que se espera de uma cidade mais eficiente em transporte e na mobilidade das pessoas”, avalia Roberta Torres, especialista em trânsito.
Torres destaca que oferecer um transporte público com qualidade é um desafio para as autoridades públicas, já que o projeto contempla áreas diversas, como mobilidade, infraestrutura, educação e também a fiscalização. “Apesar dos desafios, é algo que precisa ser feito. E a alternativa passa necessariamente por pensar em outras modalidades e até mesmo promover essa interconexão entre elas. É investir em ciclovias ou faixas para pedestres, para que as pessoas possam fazer um trajeto mais curto, e até mesmo no tão sonhado metrô e integrar esses modelos”, sugere.
Lucro com base no sofrimento do usuário
“Não é crise do transporte público. É um projeto de lucro com base no sofrimento do usuário”. A denúncia é do presidente da Associação dos Usuários do Transporte Coletivo em Belo Horizonte e Região Metropolitana (AUTC), Francisco Maciel. Para o representante da categoria, o modelo de transporte público da capital mineira viola o artigo 6º da Constituição Federal, que assegura o transporte como um direito social. “O poder público vai continuar agindo em detrimento à Constituição enquanto mantiver esse modelo (de transporte público)”, completa.
Para o presidente da Associação, problemas denunciados pelos usuários, como a superlotação, o descumprimento de quadro de horários e a falta de manutenção nos veículos, ocorrem devido à falta de fiscalização e de cobrança dos órgãos de gerenciamento do transporte público da capital para que as empresas cumpram o que está previsto em contrato. “Como, hoje, quem manda em tudo são as empresas de ônibus, então temos essa série de problemas. Quando você tem um órgão eficiente, que aplica e cobra uma multa, esses problemas amenizam, mas não é isso que ocorre. A verdade é que hoje o nosso modelo está fadado ao erro por causa da pressão dos empresários”, justifica.
A BHTrans é a responsável por desenvolver o planejamento da mobilidade urbana em toda a capital. É ela quem deve gerenciar e fiscalizar, por exemplo, os contratos de concessão do Serviço de Transporte Coletivo Convencional por Ônibus. Questionada sobre as denúncias apresentadas pelo presidente da AUTC, a BHTrans não informou quantas multas foram aplicadas nos últimos cinco anos e quantas delas foram pagas.
O Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (Setra-BH) informou que as concessionárias seguem e cumprem o quadro de horários determinado pela BHTRANS e que não tem autonomia para diminuir ou aumentar viagens. O Sindicato informou também que os veículos passam por uma checagem diária e que, além dos problemas gerados pelos desgastes naturais de peças e acessórios, os coletivos são alvos, frequentes, de atos de vândalos. “São danos recorrentes, principalmente em borrachas de vedação, portas, balaústres e alçapões de tetos dos ônibus”, disse em nota.
Dados do Transporte Público em Belo Horizonte