Em 20 de março de 2020, a realidade em Belo Horizonte era outra. Era uma sexta-feira, mas as ruas estavam vazias. Comércios, escolas e igrejas, fechadas. Um medo habitava as casas: a infecção pelo novo coronavírus. A cidade viveu a primeira experiência de lockdown. Quatro anos depois, os números de mortes relacionados à Covid-19 voltam a crescer. Apesar da situação não ter semelhança com o pavor de outrora, o negacionismo com relação à vacinação preocupa especialistas. O número de mortes por Covid-19 salta 123% em uma semana – de 8 para 21. Isso, a três meses do inverno, época em que a transmissão é facilitada. 

Os dados continuam sendo atualizados em boletins semanais da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Na sua última edição (que já é a de número 625º), os diagnósticos positivos para a covid-19 aumentaram 32% em uma semana – de 3.035 para 4.011 casos. De acordo com o infectologista Leandro Curi, o vírus da covid em maior circulação hoje na capital não é o mesmo do início da pandemia, o que explica a alta positividade. “O vírus está mais infectante agora do que no começo. A nova ômicron causa a doença mais branda no geral. Mas não é regra, organismos mais sensíveis têm complicações, e isso tem causado as mortes”, explica. 

O saldo, em quatro anos após o lockdown, poderia estar melhor se muitas das lições da pandemia não tivessem se perdido, segundo analisa a infectologista Luana Araújo, umas das que acompanhou o enfrentamento da doença desde o início. “Poderíamos tirar diversos legados da pandemia, mas se vamos aplicá-los já é outra questão”, analisa. Segundo Araújo, a dificuldade de passar por uma emergência de saúde causou fadiga na população, e, agora, ações que poderiam ser simples se tornaram desafios. 

É o caso da vacinação. A médica avalia que o nível de desinformação compartilhada durante a pandemia causou uma onda de negacionismo, o que dificulta a atualização do ciclo vacinal da covid e a imunização para qualquer outra doença. “Com a dengue, por exemplo, mesmo sendo uma doença que conhecemos há 30 anos, mesmo sendo uma vacina de produção demorada, o contrário do que foi criticado na covid, as pessoas não estão vacinando”, afirma. De fato, segundo o Governo de Minas Gerais, apenas 24% das crianças e adolescentes de 10 a 14 anos de idade já se imunizaram contra a dengue. 

A negligência com relação aos investimentos em prevenção de cenários previstos (como a epidemia de dengue que MInas enfrenta atualmente) é outra herança que os gestores não aprenderam com a pandemia, segundo avalia Luana Araújo. “Não podemos dizer que os gestores aprenderam a lidar e a priorizar a saúde. Hoje, vivemos uma epidemia de dengue, de uma doença que é possível prever, após anos de negligência (com a prevenção da dengue). Não foi investido em prevenção e enfrentamento, os agentes comunitários foram deixados de lado”, diz.  A reportagem de O TEMPO adiantou que, no ano passado, a prefeitura de BH fez o menor investimento em ações contra a dengue dos últimos três anos. 

A preocupação é a mesma com relação ao controle ambiental para redução da transmissão de doenças. A médica alerta que, quanto mais rápida é a degradação ambiental, mais próximos estamos de uma nova pandemia e um novo lockdown. “Essas doenças com o maior potencial pandêmico estão ligadas a ação que fazemos no meio ambiente e a negligência de uns com os outros. Insistir nesse comportamento de destruição do ambiente e de segregacionismo econômico só acelera o desenvolvimento da próxima pandemia”. 

Cidade parada, saúde x economia, e um aprendizado a se tirar 

O primeiro lockdown em BH durou dois meses. Durante esse tempo, apenas serviços essenciais, como hospitais, farmácias e clínicas, puderam funcionar. Esse foi um dos períodos mais desafiadores na vida de Salma Elisa Attoni, de 36 anos, coordenadora do Centro de Terapia Intensiva (CTI) da Santa Casa BH. Segundo ela, o hospital foi o primeiro da capital a implementar uma ala de CTI só para a covid-19. 

“Quando eu penso nesse momento, da cidade toda fechada, me vem o medo que tínhamos na época de viver aquilo que era inédito. O primeiro caso positivo para covid no hospital me marcou muito. Até então, só tínhamos suspeitas, até que o serviço de controle de infecção se reuniu conosco para avisar da infecção. Alí, eu soube que não tinha mais volta”, lembra a médica. 

Salma não podia se afastar de tudo como o resto da população, já que seu trabalho era o mais requisitado durante o lockdown. Dentro do CTI, motivava a equipe e enfrentava o medo do vírus enquanto tentava curar os enfermos. “A parte mais difícil com certeza foi me afastar da minha família. Eu não tinha contato com ninguém, para evitar transmitir o vírus. A pandemia mostrou para a gente que as coisas podem acabar muito rápido. Eu vi familiares juntos dentro do CTI. Isso nos humanizou, humanizou nosso contato com os pacientes. Sei que, à época, entregamos o nosso melhor”, analisa. 

De outro lado, a empresária Franciele Parreiras, de 32, precisou fechar as portas das suas lojas de vestuário feminino em um vai e vem de lockdown que durou, ao todo, seis meses. “Eu lembro que BH parecia cidade fantasma, lembro das folhas entrando para dentro da loja, a poeira acumulando nas prateleiras. Dias e dias sem poder entrar na cidade sem passar por aquelas zonas que mediam nossa temperatura. Foi muito importante e muito desafiador para nós empresários”, diz. 

Parreiras mensurou um prejuízo de cerca de R$ 1 milhão. O lockdown impediu a inauguração de uma nova franquia, que já estava pronta. Mas ela não se arrepende de ter seguido a regra. Hoje, as vendas online da loja estão entre as principais fontes de lucro do negócio. “O lockdown, a pandemia, muito me ensinou. No profissional, aproveitamos a necessidade de comprar pela internet. No pessoal, aprendi a importância da higiene e de socializar sem aglomeração. Dar valor às pequenas coisas e a saber me retirar caso fique doente”, continua. 

A disputa entre saúde e economia foi um dos desafios apontados pela infectologista Luana Araújo durante o lockdown. Ela ressalta que a queda de braço, sem razão, permanece até hoje. “Tivemos falhas na comunicação, e uma delas foi permitir que as pessoas antagonizassem saúde e economia. Não existe economia em um povo doente, e precisamos de recursos para promover saúde. As áreas andam juntas. Naquele momento, o lockdown foi de extrema importância para frear a transmissão do vírus. Era o que tinha de melhor a fazer”, afirma. 

Em meio à pressão, a ciência se mostrou capaz 

Como aprendizado positivo, a médica celebrou o avanço da ciência em um recorde de tempo. Um exemplo, segundo Araújo, é a existência de autoteste de covid e dengue a preços sociais e à disposição no Sistema Único de Saúde (SUS), o que, em 2020, chegou a custar 5.000 dólares. Mas o avanço tecnológico vai além: “a evolução vacinal e na ciência foi altíssima e amplia as possibilidades de tratamento e diagnóstico em muitas outras doenças, incluindo cânceres”.