Antônio, um motorista de 49 anos com atuação em uma linha de ônibus de Belo Horizonte que será identificado com nome fictício, acordava todos os dias às 3h30 para fazer a primeira viagem às 5h em ponto. No percurso entre a saída da garagem e o ponto final, enfrentava as dificuldades impostas pelo trânsito em horário de pico, pela ira de passageiros atrasados e pelo acúmulo de função na condução do veículo e na cobrança das passagens. Até ele não suportar mais e, após o diagnóstico de depressão, entrar na estatística que dá conta de quatro motoristas e cobradores afastados por dia das atividades por doença, segundo estudo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) em parceria com o Ministério Público do Trabalho (MPT). 

“Tinha dias em que eu queria abandonar o volante e chorar. Vou ficar por 6 meses em casa me tratando, mas sinceramente não sei quando e se vou ter condições de voltar. Só de pensar em pegar em um volante e passar por tudo aquilo já dá desespero”, conta o motorista com 8 anos de atuação nas ruas de BH. Ele foi afastado do trabalho pela primeira vez em 2020, quando toda a pressão de trabalhar no período mais crítico da pandemia o fez ter crises de ansiedade. Agora, está em casa se recuperando da depressão. “Motorista sofre demais. Xingam a gente de lerdo, falam que a gente não está carregando cavalo, querem troco para R$ 50 e, se não tiver, brigam”, relata.

O adoecimento dele compõe um quadro de más condições de trabalho, falta de estrutura e violência no transporte urbano na capital e entorno. Cenário que será descrito a partir desta segunda-feira (23) na série de reportagens Coletivo de Problemas.

Levantamento recém-divulgado após dois anos de análises dos dados do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) mostra que, de 2012 a 2019, 7.546 motoristas de ônibus da região metropolitana de Belo Horizonte foram afastados do trabalho, além de 3.913 cobradores. Ou seja, em oito anos, 11.459 trabalhadores de coletivos tiveram que se ausentar de suas funções por um período, o equivalente a quatro casos por dia. “Os altos índices de doenças, como perda auditiva, estresse, ansiedade e depressão, sinalizavam ao longo dos inquéritos conduzidos pelo MPT que as condições de ambiente de trabalho são influenciadoras diretas do desenvolvimento dessas patologias”, explica a procuradora do Trabalho Elaine Nassif.

A pesquisa mostrou que os problemas enfrentados pela categoria começam com as condições dos próprios veículos e são agravadas por fatores externos, como congestionamento, acidentes e o clima. O design das cabines é um fator que leva ao desgaste da coluna dos motoristas e a posição do motor deixa os profissionais mais expostos a ruídos que levam a danos na audição. “Por causa dos morros de BH, o motor precisa ser na frente do ônibus. Os motoristas convivem com mais barulho e têm a audição prejudicada”, diz a presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho em MG, Ivone Corgosinho Baumecker.

Apesar do desgaste físico, o que mais tem afetado os trabalhadores é a saúde mental. Condutor de coletivo por 15 anos, Cristiano dos Santos, 35, convive agora com a ansiedade e um problema cardíaco que explodiu em uma cirurgia no ano passado. “Tantos anos de ônibus abalaram demais meu psicológico e quem me disse isso foi o médico”, diz o motorista, que foi obrigado a deixar os ônibus urbanos em nome da saúde. “Além do estresse, ainda têm as horas extras e o baixo salário que nos pagam. Eu já dirigi por 12 horas seguidas”.

Afastamentos curtos não foram computados

O número real de trabalhadores do transporte público da região metropolitana de Belo Horizonte com a saúde impactada pela falta de estrutura e pelos problemas ligados à rotina profissional é ainda maior do que o quantificado no levantamento do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG). A informação é do mestre em Engenharia de Transportes e professor do Cefet-MG Renato Guimarães Ribeiro, que é um dos responsáveis pelo estudo. 

O pesquisador explica que os dados contabilizam apenas casos em que os motoristas e cobradores se ausentaram por períodos superiores a 15 dias e, assim, recebendo benefício previdenciário. “O afastamento de uma semana, dez dias, não está computado. Só os afastados pelo INSS, o que torna esse número de afastamentos muito maior”, diz.

Mesmo com a situação subnotificada, as más condições de trabalho da área estão no radar do Ministério do Trabalho. “Sabemos que as funções de motoristas e cobradores de transporte público estão entre as mais impactantes para a saúde do trabalhador. A falta de intervalo para alimentação, de repouso semanal, as excessivas horas extras são fatores de risco e problemas crônicos do setor em todo o país”, explica o chefe substituto da divisão de segurança e saúde do trabalhador da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Minas Gerais, Mário Parreiras. 

Há cerca de 20 anos, os motoristas com atuação em BH não tinham acesso sequer a banheiros. “Nós fizemos uma fiscalização e conseguimos que estruturas sanitárias fossem instaladas nos pontos finais. Antes, os motoristas precisavam pedir para usar os banheiros de lojas nas ruas em que paravam”, lembra.

Veja quais são as principais características dos veículos que afetam as condições de trabalho de operadores:

  • Ergonomia e postura: O design das cabines contribui para os danos físicos, principalmente na coluna, uma vez que não permite grandes ajustes para o motorista. Os assentos são inadequados, os volantes requerem movimentos desconfortáveis da coluna, e falta espaço para movimentação de braços e pernas.
  • Aceleração e desaceleração brusca: As paradas de ônibus contribuem para a aceleração e desaceleração brusca durante todo o trajeto, o que também provoca danos físicos na coluna.
  • Direção por períodos prolongados: Os motoristas geralmente passam muitas horas dirigindo, o que contribui para os danos físicos.
  • Acúmulo de função: Acumular a direção e outras funções, como a cobrança de passagem, aumenta a carga de trabalho muito grande e aumenta os níveis de estresse.
  • Vibração e ruído: O posicionamento do motorista próximo ao motor pode gerar surdez ocupacional e há, também, o aumento de problemas de coluna e fadiga devido à vibração.
  • Movimentos repetitivos: Característicos da direção, principalmente na troca de marcha manual, provocam fadiga muscular e lesões.

(Fontes: MPT e Cefet)