Três anos do mar de lama

Trauma da tragédia de Brumadinho parece não ter fim

Tristeza e revolta foram afloradas com transtornos das inundações recentes; dor é de todos, e não só de quem perdeu pessoas no desastre, analisa especialista

Por Pedro Nascimento
Publicado em 24 de janeiro de 2022 | 03:00
 
 
Oficina no bairro Santo Antônio, em Brumadinho, foi atingida por lama com minério durante as fortes chuvas deste mês; no rompimento de 2019, fragmento de corpo foi achado perto do local Foto: Videopress Produtora

O cenário em Brumadinho, na região metropolitana, parece tão desastroso quanto o da época do rompimento da barragem da mina de Córrego do Feijão, da mineradora Vale, que completa três anos nesta semana. Além de as paisagens urbanas terem sido invadidas pela lama de rejeitos de minério, trazidos pela recente enchente do rio Paraopeba, a população não é mais a mesma – o adoecimento mental no município preocupa as autoridades atualmente (veja mais dados abaixo).

Sentimentos como tristeza e revolta são aflorados a cada novo desdobramento do caso. As chuvas do início do mês, que provocaram a enchente do rio Paraopeba e ameaçaram a paz da região, afloraram o medo de quem permanece em Brumadinho. É o caso do mecânico Geraldo Alexander, 38, que teve a oficina onde trabalha invadida pela cheia do rio e não dorme há dias. 

“Essa lama que invadiu a cidade é mais um trauma que volta a nos atormentar. Agora, por conta de qualquer chuva, o rio Paraopeba já enche acima do normal. Isso para gente é desesperador. Ninguém fica tranquilo sabendo que a casa ou o lugar onde trabalha vai ser invadido por um mar de lama tóxica”, relata o morador.

Em uma cidade rodeada por outras barragens, o perigo de um novo desastre também afeta a vida de quem luta para não reviver a tragédia que vitimou 272 pessoas. O pânico é nítido na população, de acordo com Josiane Melo, 40, diretora da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem da Mina de Córrego do Feijão (Avabrum).

“As enchentes fizeram todo mundo reviver essa tragédia, pelo medo de novos rompimentos. Para os familiares das vítimas de 2019, abriu ainda mais a ferida. É como se toda a revolta por tudo que aconteceu voltasse”, diz.

O luto em Brumadinho não será superado, mas deve ser trabalhado com o tempo, segundo o psicólogo Bernardo Dolabella. As circunstâncias da tragédia multiplicaram a dor da perda e afetam não só as famílias, mas toda a comunidade, ressaltou. 

“É um luto que ultrapassa a questão das pessoas que vieram a morrer no desastre. Isso afeta a saúde mental de maneira mais complexa”, observou. Para Dolabella, as saídas possíveis para esse estado passam pela reconstrução das comunidades. “Como é um luto coletivo, ele também precisa ser trabalhado de maneira coletiva”, detalha o especialista.

Rede de saúde: Adoecimento mental é mais um desafio 

O episódio mais recente da tragédia da Vale em Brumadinho reacende a discussão sobre o adoecimento mental da população, que desde 2019 lida com uma mistura de luto e revolta. Conforme dados da prefeitura, em 2021, o consumo de antidepressivos e ansiolíticos na cidade subiu 31% frente a 2018, e a procura por remédios controlados para tratar depressão aumentou 103% na rede Sistema Único de Saúde (SUS). 

No mesmo intervalo, as tentativas de suicídio aumentaram 147%.

Secretário de Saúde da cidade, Eduardo Callegari acredita que a população vai precisar desses cuidados aprimorados na saúde mental por um bom tempo. “A gente costuma dizer que Brumadinho passou por uma série de catástrofes: a tragédia em 2019, a pandemia em 2020, e agora veio essa enchente. Então, a situação é muito delicada”, explicou. 

Enchentes são consequência

Em 25 de janeiro de 2019, parte dos 9 milhões de m³ de rejeitos de minério depositados na barragem foi despejada no rio Paraopeba. O crime da Vale reverbera diretamente na situação atual de enchentes, uma vez que os rejeitos aumentaram o nível do rio, explica Miguel Fernandes Felippe, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 

“É como se tivessem pavimentado o fundo do rio com esses rejeitos, e isso faz com que a lâmina d’água suba, tornando-o mais raso. Uma chuva que, antes do rompimento da barragem, não promoveria a inundação e o transbordamento agora passa a promover”, diz.