Ao longo de seus 64 anos, a Barbie exerceu vários papéis: foi dona de casa, modelo, médica, astronauta. Talvez aquele que executou com maior maestria foi o de profissional de marketing. Seis décadas após sua criação, em 1959, a boneca se mantém como um dos carros-chefe da indústria de brinquedos, movimenta bilhões de dólares anualmente e está prestes a aumentar essa fortuna com o lançamento de seu novo filme live action, que tem a bênção da gigante que detém a marca, a Mattel.
A temporada cor de rosa que agita a moda e as redes sociais na esteira do filme, dirigido pela cineasta Greta Gerwig, chegou às lojas de brinquedos. Em uma unidade de uma grande rede na região Centro-Sul de Belo Horizonte, por exemplo, os funcionários estão preparando as vitrines para destacar a nova coleção da boneca, que inclui produtos recém-lançados pela Mattel. No site da marca, eles variam de R$ 46,99 (uma edição do jogo de cartas Uno com imagens do longa-metragem) a R$ 599,99 (bonecas de colecionador com figurinos do filme).
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“Recebemos a primeira remessa e alguns modelos esgotaram. Geralmente, as Barbies que mais saem são as mais baratas, de R$ 60, porque são para presente. Mas, quando vem uma mãe, avó, madrinha para presentear, elas compram as mais luxuosas, com mais acessórios”, compartilha a gerente da unidade.
Ela aposta que a nostalgia intensificada pelo filme atrairá adultos às compras para satisfazer seus próprios gostos, e não somente o das crianças. Isso já é o que acontece há muito tempo, diz, mesmo antes de o longa reativar o imaginário em torno da personagem. A própria comerciante é prova disso: “Eu não tive oportunidade de ter uma Barbie quando era criança. Mas hoje tenho uma Barbie de festa, fashion, enfeitando o meu closet”, conta.
A Ri Happy estima que haverá incremento de 9% das vendas da boneca, em meio ao entusiasmo do público neste momento. A varejista vende uma média de 22 mil a 34 mil Barbies todos os meses no Brasil, 1.700 delas em BH.
Com 20 anos de experiência no ramo, a gerente de outra grande loja de brinquedos na capital também atesta que a procura pela Barbie tem aumentado nas últimas semanas. Não que já tenha sido baixa em algum momento, na experiência dela. “A Barbie sempre é a Barbie. Vão mudando as gerações, as crianças crescem e a largam, mas vem outra geração. Quando um cliente chega procurando um presente, vai primeiro na Barbie”, diz.
Ao longo do tempo, ela também assistiu à popularização de Barbies com diferentes fenótipos. A versão negra da Barbie surgiu em 1980, duas décadas após a loira. Hoje, existem bonecas com diferentes tons de pele e características — neste ano, a Mattel lançou a primeira com Síndrome de Down (R$ 119,99). “A loira ainda é a que sai mais, mas as outras são procuradas”, diz a gerente.
O fascínio pela Barbie também chegou à Bolsa de Valores. Analistas de mercado preveem que a estreia do filme deve elevar as ações da empresa, que negociou os direitos de uso do nome com gigantes de diferentes segmentos, como Burger King e Gap. Se o filme cumprir sua promessa e for um sucesso de bilheteria, os investidores tendem a ficar mais confiantes com a estratégia já anunciada pela Mattel de levar outras de suas marcas às telas. Por enquanto, a Barbie segue a maior de suas estrelas: o faturamento bruto da Mattel em 2022 foi de cerca de US$ 6 bilhões. Sozinha, a Barbie foi responsável por quase US$ 1,5 bilhão, a maior fatia individual do portfólio da empresa.
Barbie rompeu padrões — mas reforçou outros
Com seu corpo originalmente magro, branco e loiro, a Barbie foi um veículo para discussões ao longo das décadas. Acusada de reforçar estereótipos de gênero e um padrão estético quase inalcançável, a trajetória da boneca tem algumas nuances.
“O slogan da Barbie é ‘girls can do anything’, ‘garotas podem fazer tudo’, mas desde que seja loira, alta e com aquela cintura. Apesar de aprisionar as meninas com esse padrão, ela foi a primeira boneca que tridimensionou o corpo adulto para uma brincadeira de criança. Geralmente, elas brincavam com bonecas no formato de bebês, exercitando a maternagem. Então, surgiram outras formas de brincadeira para essas meninas. Mesmo com seu mundo cor de rosa, ela traz o Ken, o que possibilita uma brincadeira de meninos com meninas. A Barbie é um ícone e transformou os padrões de brincadeira”, avalia a psicóloga Laís Fontenelle, que estudou o impacto da Barbie sobre o imaginário infantil.
Além do marketing direto que incluiu anos de propaganda na TV, a Barbie também se tornou uma máquina de fazer dinheiro à base de diversão, avalia a profissional. “Ela transformou tudo em consumo e criou muitos produtos em cima da boneca. Ela teve namorado, carro... Por que mobilizou bilhões em vendas? Porque não era só uma boneca, era um mundo”.
Psicóloga e psicopedagoga, Roneida Gontijo pondera que o padrão de corpo reiterado pela Barbie e por outras peças de mídia durante muito tempo pode ecoar por anos. “Adultos podem continuar a lutar contra expectativas irreais de beleza e lidar com problemas de autoestima que se originaram na infância”, diz. De toda forma, ela lembra a importância da experiência com brinquedos como a Barbie na infância. “Brincar com bonecos e bonecas permite que as crianças desenvolvam habilidades sociais, como empatia, comunicação e resolução de problemas. Elas podem praticar a interação com as outros, imitando comportamentos e praticando habilidades sociais importantes”.
A psicóloga Laís Fontenelle acrescenta que houve avanços nas representações da Barbie, que passaram a incluir diversidade de corpos e papeis ao longo do tempo. Não deixa de destacar, contudo, que isso também é uma estratégia de sobrevivência de mercado da Mattel, que tem que se adaptar constantemente a um mundo em transformação.
Ainda que reconheça as falhas no legado da Barbie, Fontenelle é mais uma espectadora fisgada pelo marketing milionário da Warner Bros, produtora do novo filme, e garante: “Já estou com os ingressos comprados”.