Se para a maioria dos brasileiros a alta do dólar é sinônimo de pão, carne e combustível mais caros e viagens mais improváveis, para alguns profissionais a valorização da moeda estrangeira significa dinheiro extra na conta. Eles atuam em ocupações geralmente ligadas à internet, que permite a “exportação de serviços” para o mundo todo, e, por isso, recebem em dólar.
Há cerca de três anos, o engenheiro eletricista Pedro Mattioli, 24, dá aulas particulares sobre conteúdos relacionados à área por meio de um site norte-americano chamado Chegg Tutors. Ele recebe US$ 20 por hora/aula, mas, em épocas de alta demanda, nos últimos meses do ano, o valor vai a US$ 30. “Para mim, está maravilhoso, porque coincidiu o período de muita procura com a alta do dólar. Esta época tem presente de Natal, IPVA, e isso está salvando”, conta Mattioli, que leciona principalmente para estudantes de universidades dos Estados Unidos.
Ele diz que, em anos anteriores, já chegou a dedicar 20 horas por semana às aulas, mas, agora, está fazendo mestrado e reduziu o tempo no site. “Como recebo bolsa, o site não é a minha fonte de renda principal. Então, não fico quebrando muito a cabeça. Não vejo em curto prazo uma redução significativa do dólar, e isso me deixa preocupado. É ruim para o país ter uma moeda tão desvalorizada”, afirma. Para ele, a desvalorização do real preocupa, pois causa inflação no Brasil.
A gamer Karen Ribeiro, 19, faz vídeos ao vivo para a Nimo TV, uma plataforma de streaming de jogos lançada no Brasil neste ano. Nas gravações, ela pratica games como Call of Duty e Free Fire e conversa com seguidores. Karen recebe, em dólar, tanto da plataforma quanto dos fãs, em forma de presentes. “Para mim, a alta é boa. Ajudo em casa e logo vou morar sozinha, e isso vai contribuir muito. Mas me preocupo por ver o quanto isso mexe com outras pessoas”, pontua.
Tradutor desde 2008, Juliano Timbó Martins, 40, trabalha principalmente para agências internacionais, com traduções técnicas para diversos setores, como tecnologia da informação e games. “No início da minha carreira, o dólar estava a menos de R$ 2 e, agora, está a mais de R$ 4. É um aumento salarial de fato. Tenho mais poder de compra por ganhar em dólar e gastar em real, posso viajar mais, pagar contas mais facilmente e ter uma tranquilidade financeira”, diz.
No entanto, ele reconhece que, se permanecer, a alta poderá prejudicá-lo. “Talvez se reduza o investimento estrangeiro no Brasil e, consequentemente, as traduções para português. Espero que a economia brasileira se recupere, porque, mesmo que o dólar estivesse mais baixo, eu ainda continuaria com a vantagem de ganhar em moeda forte. Prefiro que o país melhore do que apenas o meu salário”, conclui.
Da mesma maneira pensa Marina Passos, 35, que representa uma organização norte-americana responsável por intercâmbio de estudantes do ensino médio nos Estados Unidos. “Como trabalho com intercâmbio, vejo que a tendência de aumento do dólar americano pode levar estudantes e seus pais a procurarem outros países onde o câmbio esteja menor. Fora o pensamento macro de que o enfraquecimento do real não é positivo para a economia do país”, ressalta.
Desde julho, o salário de Marina aumentou R$ 0,40 por dólar, e ela aproveita o momento para poupar: “É ótimo ter um aumento não planejado para poder juntar dinheiro. Como não sou gastadeira, pego essa diferença e guardo em poupança”.
Bom também para as indústrias
Além de alguns profissionais, a alta do dólar pode beneficiar as exportações de produtos brasileiros e a indústria nacional, de acordo com especialistas. No entanto, para os consumidores, de forma geral, a desvalorização do real ante a moeda norte-americana não é um bom negócio.
“Os favorecidos são as indústrias exportadoras. Nosso produto fica mais competitivo no mercado internacional, e isso pode ajudar no aquecimento do setor industrial, que está bastante estagnado”, diz Daniel Dayrell Matragrano, professor do curso de administração e ciências contábeis do UniBH.
Já as famílias sentem os impactos da valorização da moeda estrangeira no encarecimento de produtos diversos, como trigo, soja, carne, gasolina e diesel. “E não podemos esquecer que estamos vivendo um alto nível de desemprego. A renda do trabalhador não tem tido aumento, estamos em um cenário em que a economia cresce num nível baixo. Tudo isso, combinado com o aumento de preços de produtos para a alimentação e o deslocamento, pode trazer uma situação, infelizmente, ainda mais difícil para 2020”, conclui o especialista.
O economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Mauro Rochlin diz que o dólar mais caro pode impulsionar a inflação. “Os preços de produtos importados e nacionais que usam insumos importados vão ficar mais altos. O que o consumidor vai ver é desde o pão, porque o trigo é importado, até produtos químicos, eletrônicos e industriais mais caros. Os remédios também, porque a presença de insumos importados na indústria farmacêutica é grande”, afirma Rochlin.
Moeda não deve recuar tão cedo
Não há perspectiva de queda significativa do dólar em curto prazo, na avaliação do professor Daniel Dayrell Matragrano, do curso de administração e ciências contábeis do UniBH. “O dólar vem se fortalecendo no mercado internacional, não apenas frente ao real, e a gente só deve passar a sentir maior valorização do real quando a economia brasileira aumentar o ritmo de crescimento, atraindo mais capitais internacionais para investimentos, num caráter de longo prazo”, diz.
De acordo com o especialista, a situação econômica do Brasil é uma das várias razões para a alta do dólar. “O país está com um patamar de dívidas com relação ao PIB ainda bastante elevado, o que traz desconfiança sobre o andamento das reformas e as mudanças necessárias”, detalha.
Outros fatores que explicam a valorização da moeda norte-americana são a redução da taxa de juros brasileira para um patamar historicamente baixo, a turbulência do ambiente político na América Latina e as tensões comerciais entre China e Estados Unidos.
Saiba mais
Recorde
No último dia 27, o dólar comercial fechou a R$ 4,259 na venda, o valor nominal mais alto desde a criação do Plano Real.
Queda
O câmbio desvalorizado contribuiu para o não crescimento do faturamento da indústria do setor eletrônico em 2019, que será de 5%, segundo a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica. As empresas trabalham com muitos componentes importados, e a alta do dólar elevou o custo desses itens.