As primeiras casas dos atingidos pela tragédia da Samarco em Mariana deveriam estar prontas desde março, mas só vão começar a ser construídas em julho deste ano, com a reconstrução de Bento Rodrigues. Entretanto, um impasse entre a Fundação Renova e a Cáritas, organização humanitária da Igreja Católica que faz assessoria técnica dos atingidos, pode atrasar ainda mais o processo de reparação das vítimas.
Após uma Ação do Ministério Público em outubro de 2018, a Cáritas foi escolhida, pelos próprios atingidos, para elaborar os cadastros e os dossiês que serão usados para nortear a Renova em indenizações e no reassentamento. Do seu lado, a fundação informa que recebeu apenas 47 dos cerca de 900 dossiês envolvendo as famílias de Mariana e que isso atrasa os pagamentos dos atingidos.
Já a Cáritas explica que concluiu cerca de 250 dossiês e só não foi possível entregar todos porque a própria Renova está segurando recursos para a definição de uma nova matriz de danos. A entidade reforça que o dossiê não afeta o reassentamento.
“Independentemente de ter o dossiê pronto ou não, as famílias precisam ter essa matriz para negociar de forma segura, uma vez que têm desconfiança em função dos valores pífios que a Renova tem pagado ao longo da Bacia (do Rio Doce), por cada dano ou perda causada”, explica o coordenador operacional da Cáritas em Mariana, Gladston Figueiredo.
A Renova diz que o “acordo do dia 2 de outubro de 2018 assegura que a fundação pode seguir com a sua metodologia própria de valoração, já desenvolvida com o apoio de órgãos governamentais e entidades técnicas, bem como com o engajamento de atingidos de toda a calha do rio, exceto Mariana”, diz.
De acordo com a fundação, “não ficou pactuado que seria construída uma matriz de danos própria pelos atingidos e pela Cáritas, e nada ficou acordado sobre nova liberação de recursos para a assessoria desenvolver esse trabalho”. Em sua defesa, a Renova diz ainda que a matriz não está no escopo da assessoria técnica, que, segundo ela, tem o papel de orientar os atingidos, e não de levantar valores.
O promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, Guilherme Meneghin, que acompanha o caso, explica que levantar preços para reparação das perdas e dos danos não só faz parte do escopo de uma assessoria técnica, como é uma das funções mais importantes. “A Renova fez a precificação dos danos de uma forma injusta, jogando para baixo. Se ela gastou milhões para fazer a tabela dela, nada mais justo do que os atingidos também terem o direito de fazer sua própria matriz. A Renova representa a Samarco, a Vale e a BHP, que foram as responsáveis pela tragédia. Se ela fizer a matriz, é a mesma coisa que um criminoso tomar o depoimento de sua vítima”, afirma.
Em janeiro, o MP entrou com uma ação requerendo que a Renova libere os recursos para a Cáritas finalizar os cadastros. “A fundação vai provocar uma judicialização que vai gerar uma demora ainda maior. Sem a matriz, muita gente vai querer entrar com ações individuais, e são mais de 3.000 atingidos”, afirma Meneghin.
Sem decidir sozinha em Mariana, Vale dita regras em Brumadinho
Em apenas 15 meses, a Renova terá que gastar quatro vezes o que gastou em mais de três anos para cumprir o prazo de agosto de 2020 para entregar todos os 432 reassentamentos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira. Segundo o diretor de infraestrutura da Renova, Carlos Rogério Carvalho, já foram investidos cerca de R$ 200 milhões nos três distritos, e o total está estimado em R$ 1 bilhão. “Trabalhamos com esse prazo de 2020”, garantiu Carvalho, na semana passada, em coletiva de apresentação das obras de reconstrução de Bento.
Quem determinou o prazo para a finalização das obras foi a Justiça, já que a Renova não cumpriu o prazo inicial (março deste ano) para finalizar o reassentamento. Samarco, Vale e BHP recorreram da decisão, que também estipulou multa de R$ 1 milhão por dia de descumprimento.
Os atrasos geram comparações com a atuação da Vale em Brumadinho. “Em Mariana, essa medida foi inteligente porque os sócios da Samarco são concorrentes e teriam que sentar juntos. Já em Brumadinho, a Vale é a dona do problema e quer ser a dona da solução”, afirma uma fonte diretamente ligada ao processo de reparação em Mariana, que pediu para não ser identificada. “No caso de Brumadinho, como a barragem pertencia à Vale, não foi necessário criar uma fundação”, explica a Vale.
O professor de compliance da FEA/USP Cláudio Pinheiro Machado afirma que o formato de fundação foi necessário para reunir os atores envolvidos, mas está atrasando o processo. “(As soluções) para Mariana envolvem o governo federal, dois Estados, o Ministério Público e os atingidos. Existe uma complexidade inerente em um processo decisório participativo”, avalia. Já em Brumadinho, como as decisões se concentram na Vale, o processo é menos burocrático e mais ágil, segundo fonte diretamente envolvida nos processos envolvendo a reparação das duas tragédias que envolvem a mineradora. Nos bastidores, há indícios de que os sócios da Samarco estejam questionando a assertividade da criação da Fundação Renova.
Matéria atualizada às 19h06 do dia 30 de maio. Foram retificadas as passagens no texto que afirmavam que a divergência entre Cáritas e Renova estaria atravancando o início das obras de reassentamento. As obras de terraplanagem já começaram, o impacto maior é nas indenizações.