Das profundezas da floresta amazônica, de reservas indígenas que deveriam ser intocadas pelo garimpo e de outros territórios no país que são, no papel, protegidos por lei, saem toneladas de ouro todos os anos. Ilegal, parte dele atravessa oceanos para abastecer mercados de países mais ricos que o Brasil e outra parte passa, de mão em mão, a anéis, brincos e colares de centenas ou milhares de reais vendidos em joalherias brasileiras. Com a atual legislação nacional, a chance de que a aliança de casamento em seu dedo seja de ouro ilegal, cuja extração é responsável por contaminar rios e levar violência e fome a povos indígenas como o Yanomami, existe e é admitida, inclusive, pelo próprio setor joalheiro.

De 2015 a 2020, quase metade (47%) de todo o ouro produzido no Brasil tinha indícios de ilegalidade. Em 2021, a fatia aumentou para 51%, isto é, a chance de quem compra ouro no país adquirir um produto de origem potencialmente criminosa pode ser maior do que a de comprar uma mercadoria sem problemas. Os dois levantamentos, realizados pelo Instituto Escolhas, que se dedica a estudos sobre questões socioambientais, também revelam que a maior parte do ouro ilegal vem da Amazônia — em 2021, praticamente dois terços vieram da região. 

“Se uma pessoa vai à joalheria ou se um país compra ouro do Brasil, qual é a chance de ser ouro ilegal? No mínimo, 50%. E, quando falamos de modo em geral para o Brasil e para uma joalheria brasileira, a chance de comprar ouro que vem do garimpo da Amazônia é muito maior, porque aqui quase todo o ouro é exportado. O que fica no mercado interno, que é muito pouco, é basicamente de garimpos na Amazônia e vendido pelas DTVMs”, explica a gerente de portfólio do Instituto Escolhas, Larissa Rodrigues. 

As DTVMs são Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários. Elas são instituições que intermedeiam negociações de ativos financeiros, como o ouro. No Brasil, são as únicas autorizadas pelo Banco Central a comprá-lo diretamente dos garimpeiros. A lei que rege essa comercialização é de 2013 e estabelece o critério de “boa-fé”. Ele define que a responsabilidade de atestar que o ouro é de origem legal é do garimpeiro, e não de quem compra conferir a informação. Em teoria, é possível retirar ouro de terras Yanomami, por exemplo, e afirmar que, na verdade, ele é de um garimpo legalizado em outra parte do país sem que isso seja conferido por ninguém.

Vista aérea de um garimpo ilegal ao redor de cabanas de uma tribo indígena, durante uma operação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) contra o desmatamento da Amazônia no território Yanomami no estado de Roraima, Brasil, em 24 de fevereiro de 2023. (Alan Chaves/AFP)

Uma vez que o ouro passa às mãos das DTVMs, é considerado legal. E, assim, a corrente de “boa-fé” continua, pois as joalherias dizem pressupor que a extração daquele ouro foi regular. “A indústria joalheira adquire o metal dessas empresas no princípio de que está tudo correto, porque não tem alternativa. Um supermercado adquire carne bovina de um frigorífico com o pressuposto de que esse gado foi abatido de forma legal, que cumpre as normas sanitárias etc. Se fosse para identificar o principal problema da questão do garimpo, com toda a franqueza é a questão da ausência do poder público. A Agência Nacional de Mineração, que responde pela fiscalização no Brasil, está sucateada. As Forças Armadas, em larga medida, se ausentaram da região amazônica. Levamos o pleito da nota fiscal eletrônica à Receita Federal há pelo menos quatro anos e ela não o implementou até agora”, diz o diretor executivo do Instituto Brasileiro de Gemas & Metais Preciosos (IBGM), Ecio Morais.

As evidências da ilegalidade do ouro no Brasil se avolumam a cada ano. Em 2022, após uma parceria com o Ministério Público, o Centro de Sensoriamento Remoto (CSR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) relacionou 94% do volume ilegal a cinco DTVMs e a um laboratório.

“O setor sabe que está errado e olha para o outro lado. Não existe ‘boa-fé’, existe má-fé. O problema do ouro sendo extraído ilegalmente da Amazônia e indo para DTVMs, para exportações e para o setor joalheiro está coberto pela imprensa há pelo menos um ano. Foi denunciado formalmente ao Banco Central, a ministérios, embaixadas, representações de outros países e nada foi feito até então. O prazo para as pessoas darem desculpas e não fazerem nada acabou”, conclui Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas.

Ouro rastreável de mineradoras paga mais impostos que ouro de garimpo

O ouro é um metal inerte à passagem do tempo, não enferruja ou apodrece e é tão flexível que se transforma de pó a barra. Seu simbolismo é milenar e não há sinais de que ele deixará de ser utilizado no mercado de luxo — além de também estar presente em minúsculas quantidades em eletroeletrônicos, inclusive smartphones. Para contornar o risco da ilegalidade e preservar sua imagem, na mira dos consumidores, joalherias buscam alternativas às DTVMs e ao garimpo.

A Vivara, por exemplo, tem uma parceria com a AngloGold Ashanti para comprar todo o seu ouro com a mineradora, que tem minas certificadas em Goiás e Minas Gerais, portanto com garantia de origem. Outras joalherias já procuraram a multinacional, mas, por enquanto, os acordos não foram adiante, segundo o diretor de sustentabilidade da AngloGold, Lauro Amorim. “Desenvolvemos uma barra específica de um quilo para a Vivara. Para o mercado financeiro, é de 13 kg. Todo o processo é certificado internacionalmente. É ouro responsável, com garantia de origem do produto desde a pesquisa mineral até o produto final. Já fomos procurados por outra joalheria, mas hoje nosso contrato de fornecimento é só com a Vivara”, pontua.  

O diretor executivo do Instituto Brasileiro de Gemas & Metais Preciosos (IBGM), Ecio Morais, avalia que um dos empecilhos para a expansão do mercado de compra de ouro pelas mineradoras é a forma de tributação do metal no Brasil. Hoje, a venda de ouro como ativo financeiro, realizada pelas DTVMs, é menos tributada do que a venda de ouro como mercadoria, como das mineradoras para joalherias. “Temos que mudar a legislação e permitir que a indústria joalheira possa ter condições de adquirir de uma grande mineradora”, enfatiza.  

Mais uma alternativa para escapar do garimpo ilegal é a reciclagem do ouro, com uso do metal de joias antigas para a produção de novas. Ela é utilizada em um projeto do Centro de Estudos em Design de Jóias da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), coordenado pelo professor Adriano Mol, que tem parceria com a AngloGold. Especialista no mercado joalheiro, ele avalia que ouro direto de mineradoras e reciclagem são opções que garantem mais transparência sobre a origem do metal.

“O consumidor precisa perguntar ao joalheiro de onde vem seu ouro. A maioria dos joalheiros não têm para onde fugir e ficam sob o guarda-chuva da legalidade das DTVMs. Eles estão entre a cruz e a espada. Os que estão expostos a um consumidor mais questionador estão correndo e visualizando alternativas para o futuro. Lembra a história dos diamantes de sangue? Agora, é ouro de sangue”, diz o professor. 

DTVMs, pesquisadores e joalheiros concordam que legislação precisa ser revista

Diferentes atores do setor joalheiro e de venda de ouro concordam que a legislação sobre a comercialização do metal precisa ser revista. Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, reconhece que expulsar os garimpeiros ilegais da Amazônia, esforço que tem sido empreendido neste ano pelo governo federal, é o primeiro passo para minimizar o problema, porém não é o único. 

Um garimpeiro ilegal, ou "garimpeiro", pesa um pequeno pedaço de ouro a bordo de seu barco em um rio na bacia amazônica, ao sul de Porto Velho, no estado de Rondônia, no noroeste do Brasil, em 27 de agosto de 2019. (Carl de Souza/AFP)

“Um conjunto de medidas é necessário para acabar com essa cena de crime perfeito, ou daqui a seis meses, um ano, os garimpeiros estarão nas terras indígenas de novo. Algumas medidas são básicas e existem para outros produtos, como nota fiscal eletrônica. Outra medida são guias de transporte do ouro para ter controle toda vez que ele for se movimentando entre empresas e pessoas. A terceira medida, e mais essencial, é acabar com o sistema de boa-fé da compra de ouro. Não sei de nenhum outro tipo de mercado em que o comprador finge que acredita de onde vem o produto. Essa presunção de legalidade é o motor do problema”, destaca.

As próprias DTVMs sugerem alterações na lei. O diretor de uma delas, a F.D’Gold, Anderson Dias, defende mais rigidez com o garimpo. “Os órgãos não têm cadastro único de garimpeiros. Propusemos, há um tempo, que fosse criado um cadastro mineiro-garimpeiro. O primeiro cadastro da pessoa teria que ser feito na Agência Nacional de Mineração (ANM), onde [o garimpeiro] iria passar informações cadastrais, dizer a região onde está trabalhando e fazer reconhecimento biométrico. Toda vez que fosse até a loja [vender ouro] e fosse emitida uma nota fiscal, automaticamente essa informação iria para o site da agência e da Receita. Assim, você cria rastreabilidade para saber se aquela compra está correta”, defende.  

Outro lado: DTVM explica como faz o controle do ouro que compra

As DTVMs são citadas como um ponto problemático na cadeia do ouro pelas joalherias e pesquisadores. Elas já foram alvos de ações do Ministério Público Federal e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), vinculada do Ministério da Economia, chegou a abrir uma investigação sobre elas no início deste ano, mas repassou a responsabilidade ao Banco Central.

A reportagem procurou quatro das maiores DTVMs do mercado — Carol DTVM, F.D’Gold, Ourominas e Parmetal — e somente a D’Gold respondeu. O diretor da empresa, Anderson Dias, questiona a metodologia utilizada pelo Instituto Escolhas, que afirma que 84% do ouro comercializado por ela teve algum indício de ilegalidade entre 2015 e 2020, e diz que a pesquisa não é transparente sobre os números.

O executivo descreve como, segundo ele, é realizado o controle da origem do ouro comprado e vendido pela empresa. “Quando o cliente chega na loja para vender, é cadastrado. Hoje, temos em torno de 16 mil garimpeiros em nossa base. Fazemos checagem, vamos na Receita Federal ver se o CPF é válido, vemos comprovante de endereço, documento de identificação com foto e, além disso, ele precisa informar de onde vem o ouro. Ele vai dizer que trabalha na Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) e, diante dessa informação, a primeira coisa a fazer é levantar se ela está válida e outorgada. Contratamos um software que tem imagens de satélite para checar se naquele local existe atividade extrativa. Cumprindo-se esse passo, pedimos para ele vínculo com aquele lugar, como ele me prova que está vindo de lá. O titular da PLG fornece contrato de parceria. Ele chega na loja com ele e isso me dá segurança de que ele está falando a verdade”, diz.

E completa: “É 100% blindado? Não. Muito se discute que a lei é fraca, que ela tem suas debilidades e fragilidades. Pessoalmente, posso até concordar com isso, mas é a lei que temos atualmente em vigor no Brasil. A F.D’Gold cumpre o que ela diz”.

Procurada pela reportagem, a Agência Nacional de Mineração (ANM) afirmou, por meio de nota, que “está comprometida com a fiscalização da mineração, observando o cumprimento das determinações técnicas e legais. Todas as nossas ações institucionais são no sentido de assegurar o pleno funcionamento do setor mineral”. A agência implementou, por exemplo, um painel de inteligência fiscalizatória, com dados sobre irregularidades e fraudes no mercado.

Um suposto garimpeiro mostra alguns gramas de ouro em uma área de garimpo ilegal dentro da terra indígena Yanomami, no estado de Roraima, Brasil, em 7 de fevereiro de 2023. (Michael Dantas/AFP)

Outro lado: Ourominas

A Ourominas, outra DTVM, foi alvo de uma ação do MPF baseada no estudo da UFMG que mensura o nível de ilegalidade da comercialização de ouro, porém o juiz responsável pelo caso considerou que não havia elementos o bastante para suspender a compra de ouro pela empresa. Confira a resposta da Ourominas na íntegra:

“1. Todas as aquisições de ouro realizadas pela OM são feitas rigorosamente de acordo com a Lei 12.844/13, que regula as operações de ouro no mercado primário, com as normas do Banco Central e normas da Agência Nacional de Mineração (ANM). E a empresa também é favorável a criação de sistemas que ofereçam ainda mais segurança à aquisição do ouro como por exemplo, a nota fiscal eletrônica e a biblioteca de ouro e vem debatendo isso junto com Banco Central, Agência Nacional de Mineração, (ANM), Ministério Público Federal (MPF) e Advocacia-Geral da União (AGU) desde 2019;

2. A OM segue rigorosos critérios internos de compliance e de prevenção estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), é autorizada pelo Banco Central (BACEN 27930), credenciada na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), associada na Associação Brasileira de Câmbio (ABRACAM) e certificada na Americas Gold Manufacturers Association (AMAGOLD), na ABS Quality Evaluations (ABS QE) com os selos ISO 45001, ISO 9001 e ISO 14001, na Amiga da Floresta com o selo Plante Árvore, no Instituto Brasileiro de Florestas (IBF) e no Great Place to Work (GPTW). A OM possui parte de seus colaboradores e parceiros certificados na ABRACAM: ABT-1, ABT-2 e na ANBIMA: CPA-10
e CPA-20;

3. A OM trabalha com o ouro ativo financeiro e negocia uma pequena parte do ouro produzido no Brasil, este, que é extremamente fiscalizado pelo Banco Central do Brasil (Bacen) e Comissão de Valores Mobiliários (CVM), recolhendo o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) na sua aquisição. Tanto que entre 2019 e 2022 a empresa recolheu apenas em IOF cerca de R$45 milhões;

4. Já cerca de 80% da extração de ouro no Brasil fica com as multinacionais mineradoras e outras empresas do segmento comercial no mercado e que NÃO são fiscalizadas pelo
Bacen e nem pela CVM. Esse ouro é exportado sem recolhimento de tributo do IOF, portanto, seria melhor para o país que todo ouro explorado no Brasil em sua primeira aquisição se tornasse ativo financeiro e passasse pelo crivo do Banco Central e CVM. Com isso, o Estado teria controle e poderia garantir o recolhimento do IOF antes da exportação;

5. Não cabe à empresa opinar sobre as relações comerciais entre agentes do setor que não envolvam a atuação da OM, isso deve ser regulamentado pelo Estado”.