A capital dos bares é a ponta de uma cadeia industrial com décadas de história em Minas Gerais. O estado tem pelo menos 845 produtores de bebidas alcoólicas, passando pelas cachaças de alambique, pelas cervejas artesanais, por vinhos produzidos com uma técnica inédita e pelas latinhas que, na esteira da Xeque Mate, querem se tornar a nova sensação do Carnaval e do restante do ano. Mas, no caminho do crescimento das mineiras, estão as gigantes nacionais, que as marcas locais tentam driblar apostando na valorização da cultura regional.
Em jogo, está um mercado alcoólico que, só em Minas, pode faturar R$ 7,9 milhões em 2025 – alta de 10,2% em comparação ao ano anterior, segundo projeção do banco de dados de consumo IPC Maps. As grandes marcas nacionais têm a seu favor a capacidade de produzir altos volumes e, com milhões de reais em investimentos, lotar o estoque de bares e supermercados. Já as pequenas locais precisam contar com outros trunfos.
“A cultura de Minas sempre foi fabricar bebidas em menor volume e com mais qualidade. Esse é o nosso diferencial, pois isso irriga mais cultura na nossa bebida. Tudo aqui é mais artesanal, tem mais carinho e acabamento. Mas hoje, para ter um consumo maior, tem que ter volume. Uma coisa tem que ser casada com a outra”, introduz o presidente do Sindicato das Indústrias de Bebidas do Estado de Minas Gerais (SindBebidas MG), Mário Marques.
O sindicato calcula que haja pelo menos 250 cervejarias, 504 indústrias de cachaça e 31 de RTDs (bebidas mistas em lata, prontas para beber, na sigla em inglês) em Minas, o que movimenta 110 mil empregos. Além delas, há cerca de 60 produtores de vinho em Minas, de acordo com o Sindicato da Indústria do Vinho de Minas Gerais (SindVinho MG).
É um mercado que se equilibra entre tradição e inovação. Itaverava, cidade com pouco menos de 6.000 habitantes na região Central de Minas, ilustra essa ponte. É nela onde está instalada a fábrica de alambiques Santa Efigênia. Desde 1948, ela fornece alambiques e outros instrumentos produzidos artesanalmente para fabricação de cachaça. Até hoje, em um terreno amplo, os fabricantes trabalham à mão as peças de cobre que se transformam em torres e caldeirões, que já não são usados apenas para cachaças, mas também para gins, uísques e bebidas enlatadas.
Ainda na infância, o empresário Ramon Santos acompanhava de perto o trabalho da família, fundadora da fábrica. Décadas depois, carrega o legado no mercado de bebidas, porém em outro setor. Ele é um dos criadores da marca de RTDs Stone Light, hoje com quatro sabores inspirados em drinks clássicos (mojito, pink lemonade, tropical gin e whisky sour).
“Muitas pessoas que hoje moram em grandes centros e querem inovar no mercado de bebidas vieram de famílias que produzem cachaça. Eu vim de uma família que produz alambiques. Olhei para o mercado de RTDs como uma oportunidade em ascensão e quis trazer um pouco dessa tradição junto com a inovação”, compartilha Santos.
As bebidas são produzidas na fábrica Envasarte, montada com equipamentos da Santa Efigênia no Jardim Canadá, em Nova Lima, também um polo cervejeiro da região metropolitana de Belo Horizonte. Ela é uma parceria com outras duas marcas mineiras de RTD: a Equilibrista (criadora do Gengibre, da Rubra e do Veneta) e a The White Rabbit. Além das bebidas das próprias marcas, também envasa para outras sob demanda.
Não existe um levantamento preciso sobre quantas RTDs são produzidas em Minas atualmente – a reportagem encontrou pelo menos 47 diferentes rótulos. A cada Carnaval, surgem novas opções em busca de espaço no carrinho dos ambulantes e, depois, na prateleira dos supermercados.

Na esteira desse mercado, surgiu a Boozen, uma plataforma de venda de bebidas em geral, mas especializada em RTDs. Um dos carros-chefe da empresa é um kit com 28 bebidas de Belo Horizonte. “É bem complicado elas entrarem no mercado tradicional, nos supermercados, e queremos dar oportunidade para quem está nascendo. A turma dos drinks prontos é muito unida. É diferente das cervejas, que competem com preço. Os RTDs competem pelo produto e querem entregar o melhor. Eles têm personalidade, propostas e gostos diferentes”, pondera o criador da plataforma, André Leonel.
Quando passa o Carnaval, as marcas locais enfrentam um desafio: a sazonalidade – os períodos mais frios do ano derrubam as vendas – e a concorrência com as empresas nacionais ou até globais. “Um grande empecilho para termos uma performance melhor comercialmente é o monopólio dos grandes players. Eles entram no estado com propostas agressivas e contratos de exclusividades para donos de bares, de eventos, de grandes distribuidoras e redes de supermercado, que não dão a mesma oportunidade para nós, que somos pequenos produtores”, reflete Ramon Santos, da Stone Light.
Cachaça mineira busca novas fronteiras - e latas
Em Minas Gerais, a cachaça é tradição. O estado tem quase 2.500 marcas da bebida e concentra 40% dos produtores de todo o país. Entranhada na história de Minas – e do Brasil –, hoje a cachaça tenta romper o estigma de ser uma bebida exageradamente forte e quer se aproximar de um novo público, seja no copo de dose, na garrafa ou na latinha. A empreitada é dupla: de um lado, apresentar-se a um público desconfiado da potência alcoólica da cachaça; de outro, convencer os mais puristas a adaptar a bebida a novos formatos.
“A roupagem da cachaça mudou. Você tem garrafas maravilhosas que atraem o público millennial, que gosta de coisa bonita, nova, diferente. A coquetelaria também vem aproximando a cachaça do público jovem. A experiência do gin deu muito certo, e a cachaça vem buscando esse mercado. O pessoal da coquetelaria tem apoiado demais a cachaça e quebrado algumas barreiras”, analisa Arnaldo Ribeiro, instrutor da escola de produção de cachaça Cana Brasil.

Por muito tempo, o movimento de incorporar a cachaça a outras bebidas foi barrado pela resistência de apreciadores e produtores mais puristas do destilado, mas começa a romper essa fronteira. É a perspectiva – e a aposta – de Bruna Brandão, produtora das latinhas de Jambrunão. A bebida em lata leva a Jambruna, cachaça de jambu produzida por Brandão na cidade mineira Lamim, o guaraná artesanal belo-horizontino Guaramão e laranja. “Os produtores mais antigos tinham resistência em criar drinks com cachaça. Eles acham que é desvalorizar a bebida. Hoje em dia, acho que a galera está se abrindo mais para isso”, comenta.
Em outra frente, Brandão e outros produtores de RTD à base de cachaça procuram desmistificar a ideia de que ela seja uma bebida particularmente capaz de provocar bebedeiras e ressacas muito intensas. “Esse senso-comum de a cachaça ser uma bebida mais forte é puro preconceito. Junto com essa nova geração da cachaça, viemos combater isso, brincamos que somos ativistas da cachaça”, diz ela.
Bruna lembra que as primeiras experiências de muitos consumidores são com cachaças industrializadas, e não com as artesanais. “O que acontece no primeiro consumo de cachaça de todo brasileiro é uma cachaça de baixa qualidade, em grande volume, em uma idade em que você nem era autorizado a consumir, ressacas horríveis, e a pessoa toma um trauma”, elabora a criadora da Jambrunão. Ela evita o nacionalismo exagerado, mas complementa: "a Jambruna veio nessa defesa de abraçar mais o consumo da nossa bebida nacional, para a nossa bebida nacional se tornar realmente um orgulho para nós".

Além dela, outras marcas mineiras de RTD investem em composições com cachaça. A Xá de Cana mistura o destilado a caldo de cana e limão, e a Twenty’s tem uma série de sabores de frutas misturados à cachaça Jeceaba, produzida na cidade homônima na região Central de Minas.
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Em vez de volume, vinhos mineiros apostam na experiência
Em 2025, um vinho mineiro conquistou a pontuação mais alta da história do Brasil na mais prestigiada competição mundial, a Decanter World Wine Awards (DWWA). O Isabela Syrah 2023, da Vinícola Maria Maria, de Boa Esperança, no Sul de Minas, foi o único brasileiro a ser premiado com o ouro na edição deste ano.
Ele é um dos rótulos que se destaca no estado graças a uma técnica inédita desenvolvida e difundida pela Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), a dupla poda. Com ela, o produtor poda as videiras duas vezes por ano e inverte o ciclo da uva, que passa a ser colhida no inverno e não como na poda tradicional, no verão. A estratégia, pesquisada durante duas décadas, garantiu a adaptação da uva ao clima mineiro.
Ela é perceptível no sabor da bebida, garante o diretor do Sindicato da Indústria do Vinho de Minas Gerais (Sindivinho MG), Adans Reginato Boz. “Nosso sistema de dupla poda gera vinhos mais alcoólicos e encorpados. O vinho com a uva madura sai muito melhor”, descreve.
Ele avalia que o consumo dos vinhos mineiros, embora cresça, não é um movimento em escala. “É o mercado que acabará nos dizendo como será nosso negócio. Até agora, não é um vinho de prateleira de supermercado e grandes volumes. O que temos hoje são pequenos produtores. A perspectiva é muito boa, porque as vinícolas não têm só o vinho como sustento, mas o turismo também”, conclui.