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Documentário escancara a desigualdade e o impacto da pandemia nas periferias

'Pandemia do Sistema', que será lançado nesta terça (4), retrata como a crise do novo coronavírus afeta de forma cruel a parcela mais pobre do país

Ter, 04/08/20 - 07h03

Fome, miséria, desinformação, precariedade do sistema educacional e de saúde, violência. Esse triste roteiro, que há séculos faz parte do cotidiano de milhões de brasileiros, foi ainda mais realçado com a chegada da pandemia do novo coronavírus. Essa realidade que atinge as periferias de todo o país é o mote de um documentário que ganha lançamento online nesta terça-feira (4). (Detalhes no fim da matéria)

Filmado nos últimos três meses com recursos próprios e com a colaboração de profissionais voluntários, “Pandemia do Sistema: O Retrato da Desigualdade na Capital Mais Rica do Brasil”, da diretora Naná Prudêncio, parte de relatos de moradores para escancarar como a desigualdade social e racial dá novos contornos e potencializa a crise pandêmica e seus diversos impactos em ocupações, vilas e favelas da região metropolitana de São Paulo.

Fundadora da Zalika Produções, fotógrafa, diretora e moradora de periferia, Naná Prudêncio participou de ações emergenciais em regiões vulneráveis e percebeu que podia falar sobre a situação que encontrou com a arma que tem: uma câmera. Assim, ela passou a dar voz a essas pessoas tão negligenciadas pela sociedade e pelo poder público e retratadas de maneira míope pela imprensa. “Pandemia do Sistema” também joga luz sobre a resiliência e a capacidade de superação de pessoas que, diante do esquecimento do Estado, criam uma rede de solidariedade e fortalecimento comunitário.

Na semana passada, em entrevista ao podcast Tempo Hábil, de O TEMPO, Naná falou sobre o processo de produção do documentário, abordou a realidade encontrada nos locais visitados e reafirmou o caráter de denúncia que o filme tem. “Além do coronavírus, o filme vem para falar do ‘coronatiro’, do ‘coronamiséria’, do ‘coronafome’, do sistema de saúde precário. A ideia é mostrar que o coronavírus, e é estranho dizer isso, é o vírus que menos nos afeta nesse momento”, afirma. 

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De que forma a pandemia afetou a vida das pessoas que estão nas regiões periféricas? 

Você tem um machucado que está inflamado, sangrando há anos, mas não estava saindo pus. A pandemia deu a cutucada que expande todo o pus. Pode parecer nojento, mas é a realidade dessa ferida que tem dentro da periferia. A pandemia fez a periferia de São Paulo voltar ao anos 80, 90, galera passando fome real. Acredito que, com a pandemia, piorou muito. Antes, a galera passava fome, mas ia para o farol, ia trabalhar de doméstica, era camelô. A pandemia só estancou um problema de desigualdade que o Brasil já tinha. Tem família que eu acompanhava com a minha fotografia dentro da favela, que não passava fome e agora necessita de cesta básica. Uma coisa muito importante a se dizer é o descaso que os governantes têm com moradores de periferias nesse país, por isso o filme chama “Pandemia do Sistema”.  

Como surge a ideia do filme e como ele se relaciona com a realidade que você estava vendo?

Eu estava acompanhando algumas ações, já trabalho dentro da periferia e fui percebendo que a periferia precisava falar. Aqui em São Paulo, a periferia estava sem voz nenhuma. Na TV, estavam culpando a periferia por não ficar em casa, culpando por tentar ir trabalhar e lotar os ônibus e os grandes terminais. Toda vez que eu ligava a TV, eu me sentia incomodada. Por trabalhar com audiovisual, eu via uma realidade, e na TV eu via outra. Via a mãe favelada falando dez segundos, e o repórter deduzindo o que estava acontecendo dentro da quebrada por um minuto. Aí eu falei: bom, qual é a força que eu tenho? Estou entregando cesta básica, mas a força que eu tenho é minha câmera. Minha mãe ficou supercontra eu fazer esse filme no começo, de preocupação com a minha saúde. Eu precisava, com todos os cuidados, dar voz a essas pessoas. O filme nasceu da necessidade de denunciar as outras pandemias que existem no nosso sistema e nas nossa periferias. Além do coronavírus, o filme vem para falar do coronatiro, do coronamiséria, do coronafome, do coronasaúde, do sistema de saúde precário. A ideia do filme é mostrar que o coronavírus, e é estranho dizer isso, que o é o vírus que menos nos afeta nesse momento. Tem muita gente morrendo pelo vírus, mas porque existem outros vírus. A ideia do filme é mostrar também que nesse momento quem ajudou a periferia foi a própria periferia. A pandemia mostrou que força a favela tem, mas não consegue fazer sozinha porque não tem capital.

Sobre a abordagem da grande mídia, como o fato de serem você e sua equipe e não uma reportagem mudou a relação de fala e escuta com as pessoas que você ouviu?

A favela tem medo dos veículos grandes de imprensa. Tem medo, e nem vou falar o nome, mas a gente sabe de quem,  e tem medo justamente por essa maquiagem que rola nas entrevistas. Eu mesma já fui entrevistada e foram muitas entrevistas minhas maquiadas nesses veículos grandes. Boa parte dos entrevistados são mulheres da comunidade que eu já conhecia. Além de criar uma representatividade por ser uma mulher negra dirigindo a coisa, cria uma intimidade para poder falar e denunciar da forma que você quer. Ali ela sabe que o que vai falar não vai ser maquiado, ela não está falando para uma pessoa que não conhece a comunidade – está falando para uma mulher que conhece e, inclusive, mora em comunidade. Isso traz uma representatividade para o outro, é você olhar para a lente e ver alguém parecido com você. Entrevistei mulheres que nunca tinham dado uma entrevista. Foi uma surpresa para elas quando eu dizia que estava fazendo um documentário de denúncia sobre a nossa situação. Você acha que foi o coronavírus que deixou a senhora nessa situação? Não, estou nessa situação por ser preta, por ser favelada, porque meu marido está preso, por “n” motivos além do coronavírus. A representatividade de poder falar o que quer, sem continuar no isolamento social, porque às vezes falar para outras mídias é continuar no isolamento, é a mídia que vai até você querendo que você fale o que ela quer ouvir. Ali demos espaço para eles falarem o que eles quiserem. Eles fala muito sobre fome, racismo. Você tem que ver o brilho no olhar das meninas da favela quando elas veem uma repórter mulher, uma jornalista mulher, uma câmera mulher. Trazer essa representatividade é o mais importante de tudo.

Filmando no meio de uma pandemia, com as pessoas lidando com essas dificuldades, o que você teve de enfrentar que numa situação anterior não tinha acontecido?

Comecei a gravar esse filme há três meses, estava infame a situação. Cada viela que eu entrava tinha 20 famílias, e dez pessoas estavam com coronavírus. Uma coisa que é triste dizer, mas há cinco anos fotografando e filmando dentro da quebrada eu nunca tinha chorado. Com a pandemia, foi a primeira vez que chorei. Porque vi favelas se construindo na emergência. Várias favelas voltaram aos anos 90, da época antes do Lula, que a galera morava em madeirite. Isso me tocou muito. Nunca quis trabalhar com o lado negativo da periferia, meu trabalho sempre foi mostrar que a periferia passa necessidade, mas joga futebol, empina pipa, tem o samba, o funk. Sempre quis mostrar esse lado.

Em uma entrevista sua para o site Nós, Mulheres da Periferia, você disse que a periferia é a parte da população que é mais cobrada pelos deveres, mas é onde se tem menos direitos. Como você enxerga isso na prática, especialmente no período da pandemia?

A periferia é muito cobrada. Vamos cobrar que não tenha coronavírus na periferia, que fiquem em casa, com R$ 600 e dez filhos. A maioria nem conseguiu pegar esses benefício por “n” motivos. Você quer que a pessoa fique em casa, mas não dá estrutura para ela. Os jovens, meninos, homens negros, você quer que esse menino não atravesse a ponte e coloque a arma na sua cabeça para te assaltar, mas você não dá estudo, emprego, esperança, nenhum vestígio de sonho para esse garoto. Aí você quer ele faça 16, 17 anos e resolva prestar um vestibular? Você quer que a periferia não seja envolvida com crime, não seja envolvida com política, que a periferia não passe fome, mas você não dá nada. A partir do momento que você tem um CEP periférico você tem muito mais deveres que direitos. Fico passada e amarrotada com isso. Muito se cobra, pouco se dá. Na hora de cobrar é pra valer, é matando seu filho, é deixando você passar fome, é escola sem estrutura nenhuma, é posto de saúde até hoje dando cloroquina. O sistema do Brasil tem um plano perfeito para o genocídio da população preta periférica.

Como você enxerga essas redes de solidariedade que se formam na periferia, das pessoas se organizarem para preencher essa lacuna que é deixada pelo Estado? E como isso aparece no filme?

O filme é focado na frase “nóis só tem nóis”. O grande intuito do filme e da minha ideologia – e acredito que da ideologia das pessoas que estão à minha volta, porque ninguém faz nada sozinho neste mundo – é que esse “nóis só tem nóis” seja maior, porque tem muita gente que se entrar nessa frase vai fortalecer muito. O que a pandemia provou é que a gente consegue combater a fome sem o sistema político. Isso foi um aviso para a periferia. Neste ano tem eleição municipal, que atinge diretamente a favela. Você acha que o presidente sabe que existe a favela do Morro do Macaco? Mas o prefeito vai ter que se importar, o vereador vai ter que se importar. Agora é a hora de quem tem informação continuar dando informação. Colocar um vereador nosso lá dentro, mesmo que não seja nosso, mas que dê atenção para nós, ter jornalistas e mídias que realmente querem nos ouvir... isso tudo é um pacote. O genocídio dentro da periferia, pelo menos em São Paulo, até aquele tiro chegar ao peito do moleque de 15 anos, já aconteceu muita coisa antes. Vi liderança colocar 30 toneladas de comida dentro da sua própria favela, mas não vi um vereador levar 5 kg de arroz. Quando falo de nos unirmos é pensando na gente.

Como você trabalha a questão da distribuição dos seus filmes e de que forma você se organiza para fazer eles chegarem às pessoas?

O “Quem Te Penteia?” ficou dois anos off, rodando só em festivais e instituições com fins não lucrativos. Hoje ele está rodando também na TV, TV Senado, TV Brasil, TV Curtas, não está só no youtube. O “Pandemia” vai ser lançado hoje no portal do Alma Preta no Facebook, enquanto parceiros nossos, vai ser através de um bate-papo com uma das entrevistadas, uma convidada, e eu e a Semayat, nossa roteirista e assessora de imprensa, como mediadoras. A ideia é que o filme consiga ter uma rotatividade plural, que atinja cada vez mais lugares, como chegou em BH, como chegou no Distrito Federal, no Rio... Porque não muda, por mais que o tema seja o retrato da desigualdade na capital mais rica do Brasil, a gente sabe que as outras menos ricas passam por isso também. Mas achamos que denunciar a mais rica ajude as menos ricas. A ideia é circular mesmo, só jogar na internet a gente entende que não conseguiria fazer as pessoas refletirem de forma real. A intenção da Zalika é fazer cada vez mais filmes para nosso público real, que é a periferia. Por isso não vamos jogar o filme só no YouTube. A gente sabe que a periferia não é uma consumidora de filmes no YouTube. Ela consome filme se o filme for até a viela dela, e essa é a intenção.

Lançamento

O documentário “Pandemia do Sistema”, da Zalika Produções, responsável também pelo filme “Quem Te Penteia?”, será lançado nesta terça-feira (4), às 19h, no página da agência de jornalismo Alma Preta no Facebook. Após a exibição, haverá um debate com participação da diretora Naná Prudêncio, de Douglas Belchior, da Uneafro Brasil, de Luana Vieira, gestora executiva do projeto sociocultural Comunidade Pagode na Disciplina Jardim Miriam, e de Raimunda Boaventura, entrevistada no filme.

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