Lançado em 1956, “Grande Sertão: Veredas” continua sendo um desafio e tanto para os leitores, devido à linguagem criada pelo escritor mineiro Guimarães Rosa, recheada de neologismos e inversões de orações. Também ganhou o rótulo de “infilmável” durante muitas décadas, mas essa barreira acaba de cair de uma forma curiosa: nada menos do que três adaptações para o cinema devem ganhar as telas em 2024.
Pelos nomes envolvidos nas produções – realizadores reconhecidos como Bila Lessa, Guel Arraes e Adirley Queirós – e pelo que já foi apresentado em festivais, são obras que mergulham no sertão mítico de Rosa de maneiras muito distintas entre si. A essência (ou, como prefere dizer Queirós, a “atmosfera”) está lá, mas com tratamentos e propostas diversas que apontam para riqueza e atualidade de um dos mais importantes livros de nossa literatura.
Guel Arraes, que assina “Grande Sertão”, traz características que o aproximam do cinema mais popular – é dele também a comédia “O Auto da Compadecida”, baseada na peça teatral de Ariano Suassuna, outro nome ligado a temas regionalistas. Com roteiro de Jorge Furtado (“O Homem que Copiava”), o filme carrega a violência dos jagunços para o território dos bandidos da periferia urbana, em um tempo indeterminado.
Bia Lessa (“O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho”) e Adirley Queirós (“Grande Sertão: Quebradas”) têm um cinema mais provocativo. As experimentações da diretora flertam com o teatro, especialmente de Bertolt Brecht, ao trabalhar um único cenário de paredes pretas (o teatro caixa preta), completamente despojado de cenários e objetos. Nesse sentido, lembra muito o longa “Dogville” (2003), de Lars von Trier.
Oriundo de Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, Queirós exibe um trabalho de forte pegada sociopolítica, com uma filmografia que abriu caminho para um cinema periférico em trabalhos como “Branco Sai, Preto Fica”, “Era uma Vez Brasília” e “Mato Seco em Chamas”. Em fase final de filmagem, traz uma participação ativa de quem, na visão do cineasta, seriam os jagunços de hoje – os marginalizados e oprimidos pelo Estado.
“‘Grande Sertão: Veredas’ é um livro com mil portas de entrada”, avalia Guel, sobre o interesse atual pela literatura de Rosa. Caio Blat vive Riobaldo em “Grande Sertão”, ator e personagem também de “O Diabo na Rua”, que ainda compartilha com o filme de Guel a atriz Luisa Arraes – por sinal, filha do diretor e esposa de Blat. A origem dos dois filmes e do elenco em comum está numa peça que Bia fez em 2017.
“Achei a peça de Bia Lessa uma obra-prima, e ela nos deu coragem para tentar a nossa própria versão. Caio e Luisa foram um elo entre os dois trabalhos”, confirma. Guel explica que a sua transposição juntou dois projetos que ele e Jorge Furtado tinham “vontade de desenvolver: uma adaptação de ‘Grande Sertão’ e uma história sobre a violência urbana. A visão de Guimarães Rosa sobre os jagunços-cangaceiros era extremamente atual”.
Assim como em algumas adaptações das peças de William Shakespeare, que levam as tramas para o mundo contemporâneo sem mexer nos diálogos originais, Guel também oferece esse choque no filme. “Mantivemos a prosódia do livro e procuramos certo tom épico na encenação de nossa atualidade”, adianta. No mês passado, ele recebeu o prêmio de melhor diretor durante a 27ª edição do Tallinn Black Nights Film Festival, na Estônia.
“O que posso dizer é que a barreira que me parecia mais difícil para um público estrangeiro saltar, a da prosódia de Guimarães Rosa, parece ter sido superada graças às excelentes legendas de Melissa Mann”, louva o cineasta, elogiando o trabalho de uma tradutora com 20 anos de experiência que aceitou o desafio de, em pouco tempo, criar as legendas em inglês do filme da forma mais fiel possível ao estilo rosiano. Pelo visto, conseguiu.
Sertão das quebradas
Às voltas com as derradeiras sequências de “Grande Sertão: Quebradas”, com lançamento previsto para o segundo semestre de 2024, o cineasta Adirley Queirós não tem dúvida de que o livro de Guimarães Rosa continua “infilmável até hoje”. Grande admirador da obra do escritor mineiro, o diretor é categórico ao dizer que “é impossível fazer”.
“Ele é infilmável, sim. Já era impossível se você fosse numa linha de adaptação mesmo, precisando de muito dinheiro para fazer. Na verdade, o que a gente faz é muito livre, né? O que (meu filme) tem do livro são atmosferas”, observa Queirós, que estabeleceu um processo mais experimental desde as primeiras conversas sobre o roteiro.
No princípio, durante a pandemia, ele e a ex-presidiária Léa Alves, que tinha protagonizado o longa anterior do cineasta, “Mato Seco em Chamas”, liam uma página de “Grande Sertão: Veredas” por dia e trocavam opiniões de acordo com a realidade de Ceilândia, cidade localizada na periferia de Brasília.
“Se ele já é difícil para quem tem certo hábito de leitura, imagine para quem não tem. E a Léa começou a se empolgar muito com o livro. A gente demorou praticamente a pandemia toda lendo o livro. O que a Léa faz é reescrever ‘Grande Sertão’ para poder conversar com ele”, revela Queirós.
“É uma coisa maravilhosa. Ela dizia: ‘Eu não sei o que ele (o autor) está falando, mas acho que está querendo falar assim’. Ela acaba falando de coisas muito simples, na verdade. E é muito lindo isso. E também é muito profundo. Porque era como Guimarães falava, de certa forma”, adianta o realizador.
Queirós é, como ele mesmo diz, um daqueles que “sempre tentaram ler (‘Grande Sertão: Veredas’) e não conseguiram, ficando com ele na cabeça o resto da vida”. As primeiras tentativas foram na época de escola, quando tinha 16, 17 anos, como leitura obrigatória.
“O pouquinho que a gente captava, os fragmentos, ficava na cabeça. E você ia recontando o livro de outras formas. A minha leitura de ‘Grande Sertão’ nunca foi orgânica. Para mim, é a maior obra brasileira, não só de literatura, mas de tudo’, entusiasma-se o realizador.
Tanto para ele como para Léa Alves, o que mais se evidencia na obra rosiana são as expressões. “Podemos dizer que eram como gírias. Gírias de maloqueiro, vamos dizer assim. ‘Grande Sertão’ é uma maloqueiragem. No nosso caso, uma maloqueiragem contemporânea”.
A chave do processo do filme, segundo ele, muito mais do que a história, é o entendimento da invenção da linguagem. E, assim, seguir firme na ideia de se ater apenas às atmosferas, não necessariamente sendo fiel à história concebida por Rosa em 1956.
O filme caminha no sentido de inserir outras referências, até mesmo citando outras obras literárias, como a ficção científica “As Crônicas Marcianas”, de Ray Bradbury, que trata da memória capturada e de como estamos em eterno processo de expansão.
A questão da expulsão das terras ressurge em “Quebradas” em outra leitura, enxergando Ceilândia como um refúgio de vários migrantes, nordestinos e mineiros (procedência dos pais do diretor, por sinal). “Ceilândia é ‘Grande Sertão’ total”, define.
“O livro é tão forte, tão contemporâneo, na perspectiva de pensar um país e projetar todas as relações arcaicas, que muito do que está lá existe ainda em nossas ruas”, sublinha Queirós, que também traz os temas da solidão e da religiosidade.
Ele salienta que se trata de um trabalho mais intimista, nada espetacular. “A gente não está circulando pelas veredas de Minas Gerais, buscando o encontro com a beleza e a natureza. Aqui é quebrada. É a igreja, o boteco, o desemprego, a especulação imobiliária e a grilagem urbana”.
Atualidade da obra
Bia Lessa também mirou na atualidade da obra de Guimarães Rosa ao realizar "O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho", quinto longa-metragem da diretora paulista. “Para que vivemos? O que significa estar vivo? Para qual lado iremos? O que representa essa guerra em Gaza? Cada vez mais o livro de Guimarães Rosa passa a ser mais atual e fundamental, porque é um livro formador”, observa.
No filme, não há locações e praticamente não há objetos de cena. “A realidade é feita pelo o que você diz que é real. Como é enfrentar aqueles atores fazendo piu-piu e acreditar que são pássaros? É lindo porque dá ao cinema o que lhe cria, que é a ilusão", destaca a realizadora, cujo mergulho na história se deu bem antes do filme, fez o projeto gráfico para o livro comemorativo de 50 anos.
"Aquilo lhe toma de tal forma que passa a fazer parte de você de uma maneira inacreditável, com questões atrás de questões. Algumas eu resolvi na exposição; outras no teatro. Agora, no cinema. É como se a obra estivesse o tempo inteiro pedindo para que a gente a enfrentasse diante dos problemas”, pondera Bia, que usou muito da linguagem cinematográfica na peça.