Eugênio Fiúza Queiroz e Paulo Antônio Silva ficaram conhecidos como “sósias” do chamado “Maníaco do Anchieta”. Após anos presos, os dois conseguiram ser inocentados, definitivamente, ainda em 2012, por meio do processo conhecido como revisão criminal. Apesar disso, passados 11 anos e após Queiroz ter morrido com doenças que seriam consequência dos anos passados na prisão, a família deles segue sem receber qualquer quantia das indenizações por danos morais e existenciais já vencidas na Justiça. A reportagem faz parte do segundo dia da série de reportagens de O TEMPO O custo da injustiça

 

Enquanto a família do artista plástico Queiroz depende da conclusão das instâncias superiores da Justiça para, enfim, receber R$ 2 milhões de indenização, as filhas do ex-porteiro Silva ainda precisarão lutar contra a ganância de advogados que, há cerca de quatro anos, impedem a conclusão do pagamento dos precatórios pelo Estado de Minas Gerais. 

 

Preso durante cinco anos e sete meses, Silva ainda amarga as consequências da detenção. O advogado Júlio César Martins Dias o acompanha desde o início e lembra que, em outubro de 2018, o seu processo chegou ao fim, com a conclusão de todos os recursos possíveis e a definição de uma indenização de R$ 1,5 milhão. 

 

“Em 2019, partimos para receber a quantia, porém passamos a enfrentar um intenso embate jurídico com outros advogados, que queriam se aproveitar da situação dele (Silva) para pegar parte da indenização. Em 2021, uma decisão judicial retirou do caso dois advogados que pretendiam executar, para cada um, 25% do valor recebido pelo meu cliente, o que dava algo em torno de R$ 800 mil”, detalhou o defensor. 

 

Praticamente cego e com a saúde mental afetada, Silva teria assinado procurações de diversos advogados ao longo dos anos, o que complicou ainda mais o andamento do processo. Por conta disso, as suas filhas ajuizaram um pedido pela interdição judicial do pai. Porém, como o laudo indicou apenas a insanidade parcial, a Justiça converteu em Tomada de Decisão Judicial, processo que obriga que os familiares sempre sejam consultados sobre as decisões do titular. 

 

Filha do ex-porteiro, a auxiliar de ecursos humanos Ana Paula Silva, de 33 anos, conta o que motivou o pedido de curatela feito por ela e pela irmã. “No que depender do meu pai, ele dá dinheiro para os outros. Ele já está velho, precisa cuidar da saúde agora. O que a gente (filhas de Silva) pensa é que ele precisa receber essa indenização para cuidar da saúde e poder morrer em paz”, disse. 

 

Ainda conforme Ana Paula, o pai perdeu a infância delas e, depois de deixar a prisão, teve problemas de convivência com a família. “Pela forma como ele foi devolvido à sociedade, ficou um pouco difícil de conviver. O tempo inteiro ele só fala dessa situação, você não consegue conversar com ele sobre outro assunto a não ser a prisão. Tem hora que não tem como a gente conviver com ele, com os netos dele", conta, emocionada, a filha de Silva. 

 

No caso de Eugênio Queiroz, o processo segue parado nas instâncias superiores, segundo o defensor público responsável pelo caso, Wilson Hallak. Conforme a família do artista plástico, antes de morrer, ele deixou um testamento em que dividia os valores que viria a receber entre a sua irmã, Maria Suzana, e o seu filho, com quem só teve contato após deixar a cadeia.

 

AGE não revelou gastos com indenizações

 

O TEMPO procurou a Advocacia Geral do Estado (AGE) no dia 13 de julho de 2023 e pediu dados referentes a indenizações pagas pelo Estado de Minas Gerais nos anos de 2020 a 2022. Passados 12 dias, o órgão ainda não respondeu à demanda. 

 

O órgão só se posicionou para dizer que não recorreu mais na Justiça no processo de indenização de Queiroz, uma vez que, ao receber o artista plástico para pedido de desculpas oficial do Estado, o governador Romeu Zema (Novo) teria orientado a AGE a não apresentar mais recursos no caso.

 

Apontado como autor passou 6 anos na cadeia     

 

Preso em março de 2012 depois de ser reconhecido por uma das vítimas, que cruzou com ele na rua 15 anos após o estupro, Pedro Meyer Ferreira, hoje com 67 anos, está em liberdade desde 2019 e vive ao lado e com o apoio de “família e amigos que sempre acreditaram em sua inocência”, segundo seu defensor. 

 

Lucas Laire, professor universitário e advogado do homem, conta que Meyer foi alvo de 16 inquéritos, sendo que 13 deles foram arquivados por falta de provas; em dois, ele foi absolvido, e um único culminou em sua condenação a nove anos e 11 meses de reclusão. “Esse processo já se encontra arquivado. Ele (Pedro Meyer) já está recuperado, cumpriu sua pena na totalidade e se encontra bem com a sua família. A questão toda (processo contra ele) foi baseada em depoimentos. Não tem nenhuma prova objetiva, e isso, para a família, já é um caso superado”, completou. 

 

Apesar de a família acreditar na inocência de Meyer, no dia de sua prisão, ele confessou não apenas o estupro da jovem que o reconheceu, que tinha apenas 11 anos na ocasião do crime, mas, também, outros dois abusos. As vítimas, com idades entre 16 e 26 anos, teriam sido atacadas entre os anos de 1992 e 2005. Após a divulgação de sua prisão, ocorrida quando Queiroz e Silva já cumpriam suas penas na cadeia, outras 15 vítimas teriam o reconhecido como o “verdadeiro maníaco”. Entretanto, como alertou seu advogado, o homem só foi condenado por um dos estupros. 

 

Diferentemente dos outros dois homens, presos e inocentados, os parentes de Meyer preferiram não conversar com O TEMPO, uma vez que, segundo o advogado, eles “desejam privacidade”.

 

O caso dos irmãos Naves

 

O ano é 1937. Na tentativa de encontrar culpados para o desaparecimento do comerciante de cereais Benedito Pereira Caetano e o sumiço de 90 contos de réis (equivalente a cerca de R$ 2,2 milhões), um delegado recém-chegado à cidade de Araguari, no Triângulo Mineiro, decide acusar os irmãos Sebastião José Naves e Joaquim Rosa Naves de, juntos, terem assassinado a suposta vítima. A hipótese era de que eles – primos e sócios de Benedito – teriam, supostamente, executado o comerciante para ficar com o dinheiro. 

 

Sebastião e Joaquim foram encarcerados, sofreram tortura para confessar o crime, testemunharam as companheiras e a própria mãe serem estupradas por policiais dentro da cadeia e foram sentenciados a 25 anos de prisão, em uma condenação que é considerada um dos erros mais emblemáticos da Justiça brasileira. A história é retratada no livro “O Caso dos Irmãos Naves” (João Alamy Filho, 1960) e em um filme de mesmo nome, do cineasta Luís Sérgio Person

 

Sem provas suficientes para serem incriminados – não havia cadáver nem testemunhas –, Sebastião e Joaquim Naves chegaram a ser absolvidos duas vezes pelo tribunal do júri de Araguari, mas o Tribunal de Justiça, mediante influência do regime ditatorial da Constituição de 1937, anulou as decisões e condenou os irmãos a 25 anos de prisão – posteriormente reduzidos para 16. Eles passaram oito anos em regime fechado, até conseguirem a liberdade condicional por bom comportamento. Joaquim, no entanto, morreu pouco tempo depois em decorrência de sequelas das torturas sofridas na prisão. 

 

A inocência dos irmãos Naves só foi comprovada em 1952 – 15 anos após o suposto crime – devido a uma reviravolta no caso: dado como morto pela polícia, Benedito estava vivo. Descobriu-se que o homem havia fugido com os 90 contos de réis e se escondido na fazenda do pai, em Nova Ponte, no Triângulo, a 90 km de Araguari, onde foi visto pela última vez.  Ele mudou de nome e alegou ter desaparecido por vergonha de não poder quitar uma dívida, mas nunca admitiu saber que os primos haviam sido presos inocentemente. 

 

A localização de Benedito motivou um novo julgamento e a absolvição dos irmãos Naves. O Estado foi condenado a indenizá-los, mas Sebastião morreu antes de receber a reparação financeira. O montante só foi pago em 1975 e entregue aos filhos de Joaquim e à viúva de Sebastião.