Último monarca do então Império do Brasil, dom Pedro II foi, ao longo de boa parte de seus 58 anos de reinado, alvo de zombaria no meio político e de enfáticas sátiras reproduzidas na imprensa por conta do que parecia ser uma extrema facilidade de pegar no sono. Aparentemente, pouco importava se estava em um local público ou se o momento era inapropriado para uma soneca: ele simplesmente adormecia. Hoje, contudo, estudiosos indicam que, ao contrário do que se pensava na época, a excessiva sonolência diurna do imperador poderia não estar relacionada a um “desinteresse”, mas sim à má qualidade do repouso noturno.
 
Acredita-se que dom Pedro II sofresse com a síndrome de apneia do sono do tipo obstrutivo, ainda atualmente uma das principais causas de problemas com o sono em todo o mundo. Nesse caso, durante as crises, a pessoa, que normalmente ronca ao dormir, sofre com um bloqueio da passagem de ar pela faringe, o que causa uma parada respiratória. Reagindo ao fenômeno, o sujeito desperta várias vezes durante a noite. Um problema crônico e comum, estima-se que, no Brasil, até 35% da população sofra com a apneia. E, agora, com a pandemia do coronavírus, alguns países, como a Islândia, passaram a considerar esse distúrbio do sono um fator que leva à necessidade de internação de pacientes com a Covid-19 em Centros de Terapia Intensiva (CTIs). Para o psiquiatra Dirceu de Campos Valladares Neto, a decisão é mais um exemplo do reconhecimento de como a qualidade do descanso é primordial para a saúde.
 
Mas, não bastasse a já flagrante tendência contemporânea de se dormir cada vez menos, a atual emergência de saúde parece piorar ainda mais esse quadro e tirar o sono de muita gente. No Brasil, 44% acreditam que o descanso noturno está comprometido por causa de preocupações diretamente relacionadas ao coronavírus, conforme um levantamento realizado pela empresa de inovação corporativa The Bakery. E essa piora da qualidade do repouso é especialmente preocupante para um país que já figura entre os mais insones do mundo. Ocorre que, segundo estudo da Universidade de Michigan, os brasileiros costumam ir para a cama às 23h40 e permanecem nela por sete horas e 36 minutos. Entre as nações avaliadas, só no Japão e em Singapura se dorme menos do que aqui.
 
“O problema é que, sem sono, o ser humano adoece”, define o psiquiatra, sublinhando que a má qualidade do descanso noturno é fator de risco para doenças cárdio e neurovasculares, como o infarto do miocárdio e o Acidente Vascular Cerebral (AVC), e para doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. Por outro lado, dormir bem traz benefícios diversos. Para começar, amplia a sensação de bem-estar. “Quando você descansa adequadamente, se torna um ser humano mais presente e mais ativo. Você reflete melhor, reduz suas impulsividades, se tornando mais equilibrado”, comenta. Além disso, há ganhos imunológicos. “Há pesquisas que demonstram que pessoas que dormem melhor sofrem menos os efeitos de gripes virais”, reforça o especialista.
 
A neurologista Rosana Cardoso Alves lembra outras complicações relacionadas a problemas para dormir. “Existem diversos trabalhos que mostram que pessoas que têm sono interrompido têm mais risco de diabetes e obesidade. O desempenho cognitivo e os mecanismos de atenção e de memória também ficam prejudicados. Há repercussão até mesmo na ocorrência mais comum de pensamentos negativos. E, se a pessoa já tem tendência a algum transtorno psiquiátrico e ela dorme pouco, isso pode piorar esses quadros”, explica.
 
O sono de cada um. Rosana Cardoso Alves cita que, em média, as pessoas precisam de um sono de sete a oito horas para se sentirem plenamente descansadas e restauradas. Ela expõe que há exceções. “Temos os dormidores curtos e os dormidores longos, sendo que os primeiros vão precisar dormir até seis horas para se sentirem bem, e os últimos podem precisar de um período de nove horas para isso”, explica.
 
“Guinness”. O “Guinness Book” não considera mais os recordes de maior tempo sem dormir, pois há um consenso de que essa prática traz severos prejuízos para a saúde. O único caso registrado ocorreu na década de 1960. Porém, depois de ficar 264 horas acordado, o estudante norte-americano Randy Gardner passou a sofrer com insônia.
 
Inimigos do sono
 
“Hoje, entre os principais inimigos do sono está a percepção inadequada de que o descanso não é importante”, salienta Dirceu de Campos Valladares Neto. Algo sensível em frases que associam dormir a ser improdutivo. Essa desvalorização pode levar a uma negligência da má qualidade do repouso. “O problema vai acontecendo de forma insidiosa, vai comendo a pessoa pelas beiradas. A pessoa não dorme bem, mas ela vai se acostumando com isso e vai adoecendo aos poucos”, conclui. E, ironicamente, dormir pouco implica ainda déficits cognitivos que vão afetar frontalmente a produtividade do sujeito.
 
As telas são também um inimigo comum ao sono. “A luminosidade de TVs, smartphones, tablets e notebooks é um problema em si, porque reduz a produção de melatonina, que é uma substância importante para o relaxamento”, cita Rosana Cardoso Alves, complementando que o conteúdo do que se vê nesses dispositivos é outro obstáculo à medida que implica aumento da ansiedade. A própria lida com o estresse é um empecilho para um bom descanso, explica a neurologista. Por fim, bebidas estimulantes, como café e chá preto, também são um problema comum. E, embora atividades físicas sejam benéficas para a saúde de maneira geral, exercícios antes de dormir são contraindicados, pois deixam o corpo em alerta.
 
Em oposição a esses hábitos, fala-se nas medidas de higiene do sono. “Basicamente, é sobre evitar todas essas condições anteriores, e, além disso, é muito positivo se a pessoa consegue estabelecer uma rotina regular. Assim, você ajuda a regular seu relógio interno”, diz Rosana. Técnicas de relaxamento, como meditação e mindfulness, também são recomendadas.
 
Entretanto, “muita gente já experimentou seguir essas regras, mas não conseguem dormir bem mesmo assim. Em geral, isso acontece quando as pessoas se forçam a essas atividades. Mas o ideal é que sejam aprazíveis e agradáveis”, examina Valladares Neto. “Se a pessoa ficar tensa, ela estará afugentando o sono, porque ele foge de nós quando ficamos preocupados. Por isso, devemos deixar de nos preocupar até com o próprio sono”, sinaliza o psiquiatra, acrescentando que, em alguns casos, pode ser importante recorrer a medicamentos, por exemplo, para o controle da ansiedade.
 
Saiba mais sobre a apneia obstrutiva do sono
 
Fatores de risco. A otorrinolaringologista Melânia Marques explica que a obesidade é o principal fator de risco para a apneia do sono. Outros fatores de risco incluem idade, sexo masculino, aumento da circunferência do pescoço, alterações craniofaciais e história familiar.
 
Consequências. A especialista expõe que, com o descanso comprometido, podem ocorrer sonolência diurna e cansaço, que ampliam o risco de acidentes automobilísticos e de trabalho. Além disso, “apneias frequentes podem provocar ou agravar outros problemas de saúde, como hipertensão arterial, arritmias e diabetes”, informa.
 
Sinais e diagnóstico. “Os sintomas mais comuns que levantam a suspeita da doença muitas vezes são mais observados por familiares ou amigos, como os roncos, além de engasgos, pausas respiratórias, movimentos bruscos do corpo durante o sono”, observa Melânia, completando que é preciso um exame de polissonografia para confirmar o diagnóstico.
 
Tratamento. A otorrinolaringologista detalha que o problema exige tratamento multidisciplinar e deve ser baseado nas comorbidades do paciente e na gravidade do caso. “Além de medidas de higiene do sono e perda de peso, são empregados terapia com pressão aérea positiva (CPAP), aparelhos intraorais, fonoterapia e intervenções cirúrgicas”, conclui.