Você faz terapia? Se sim, você realmente conta tudo nas sessões? Se a resposta for “não”, já parou para refletir sobre o que te impede de abrir sua caixa de Pandora dos pensamentos mais íntimos? Já parou para pensar em como esse comportamento interfere no tratamento? Segundo especialistas ouvidos pela reportagem de O TEMPO, é importante refletir sobre o assunto, que impacta diretamente no resultado de todo o processo. As respostas são complexas e podem revelar que o maior juiz, na maioria das vezes, não está na poltrona à nossa frente, mas dentro de nós mesmos.

Para adentrar no tema, é preciso compreender que, mesmo sendo um espaço no qual o sigilo absoluto é a premissa principal, a terapia exige uma vulnerabilidade profunda. Por isso, essa dúvida é natural em quem decide embarcar na jornada da psicoterapia, mas também fundamental para o processo, garantem profissionais da área. Contrariando o senso comum, a dificuldade em revelar tudo raramente se deve à desconfiança no sigilo profissional, conforme explica o psicólogo e psicanalista Eduardo Oliveira: “O cadeado do sigilo tranca a porta para o mundo lá fora, mas a verdadeira dificuldade é lidar com o que já está do lado de dentro”.

Ao longo da vida, ele pontua, criamos mecanismos para nos proteger de verdades dolorosas, que a psicanálise chama de resistência. “Não é teimosia, é um instinto de sobrevivência psíquica. Falar sobre certos assuntos é como se aproximar de uma chama que já nos queimou antes. O corpo e a mente recuam”, detalha Oliveira. O psicólogo ilustra com um exemplo: “Pense naquele executivo que busca ajuda para sua ansiedade. Ele pode passar meses descrevendo a pressão do trabalho, as metas, a família. O que ele não conta é que, no início de tudo, houve uma fraude, um atalho que abriu a primeira porta. Ele sabe que não vou denunciá-lo. O problema é que admitir isso para mim significa, antes, admitir para si mesmo, e isso pode fazer desmoronar a imagem de ‘homem de sucesso’ que ele tanto se esforça para sustentar”.

Doutor em psicologia social e professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG, Cláudio Paixão adiciona outras camadas a essa resistência, como a proteção de terceiros. Muitas vezes, o segredo envolve familiares ou pessoas próximas, e o paciente teme expô-los, mesmo no ambiente sigiloso. Há também o que ele chama de “desconfiança residual”: um receio, mesmo que vago, de que as informações vazem ou sejam usadas de forma julgadora, o que mina a base da confiança necessária para a abertura total no processo terapêutico.

Juiz interno

Outro ponto de destaque é o medo do julgamento do terapeuta, o que, frequentemente, é um reflexo do julgamento que a pessoa faz de si mesma, conta Oliveira. Ele chama este fenômeno de desconstrução de a virada de chave mais libertadora de uma análise. “Na esmagadora maioria das vezes, o medo do meu julgamento é apenas um eco do julgamento implacável que o próprio paciente faz de si mesmo. Todos carregamos um juiz interno, um ‘Superego’ cruel, que nos pune com uma severidade que jamais usaríamos com um amigo”, pontua o psicólogo e psicanalista.

Esse juiz interno, segundo Paixão, é construído a partir de questões familiares e socioculturais. “É muito comum as pessoas crescerem e viverem como ‘párias’ da própria família. Características e comportamentos são vistos como tão abjetos que a família não aceita. A pessoa internaliza isso e passa a acreditar que ninguém mais a aceitará”, explica. Ou seja, falar sobre o indizível é, portanto, confrontar o medo de se ver como alguém abjeto aos olhos da sociedade. Isso pode levar a pessoa a procurar terapeutas com perfis muito diferentes do seu, na tentativa de encontrar um olhar que não seja um espelho de seu próprio grupo social, acrescenta o profissional. 

O professor ressalta que essa dificuldade pode se manifestar em dúvidas paralisantes para o paciente: “Como que eu explico isso? Qual que é o meu medo? Como que eu começo a contar essa história? Muitas vezes, essas histórias esbarram em vergonha, culpa, idealização, então costuma ser complicado”.

Alteridade X Empatia

Os terapeutas não tratam a abertura completa como um pré-requisito para dar início às sessões, mas sim como uma consequência de um processo. “A confiança não se decreta, se constrói. É uma dança lenta”, frisa o psicólogo e psicanalista Eduardo Oliveira. Segundo ele, a caminhada começa com o paciente “testando as águas”, compartilhando informações semi-delicadas e observando a reação do profissional.

Nesse ponto, o papel do psicólogo é crucial. Cláudio Paixão utiliza uma metáfora da alquimia para descrever o consultório: o vas bene clausum, ou “vaso bem selado”. “A terapia deve ser um espaço hermeticamente fechado, onde o que está fora não interfere no que acontece dentro. Ali, a pessoa pode ser quem ela é, permitindo que os processos ocorram sem contaminação externa”, analisa.

Para que isso aconteça, o profissional deve praticar a alteridade, um conceito que Paixão considera mais profundo e eficaz que a empatia. “A empatia implica em eu me colocar no seu lugar a partir dos meus referenciais. A alteridade é o olhar do antropólogo, que tenta entender como as pessoas se sentem sendo elas, naquela situação específica”, diferencia o professor. “A função do terapeuta não é ser juiz, mas criar um espaço seguro para que todas as verdades, mesmo as mais contraditórias, possam ser ditas”, completa o psicólogo.

Mais que desabafo, uma construção contínua

Esconder ou maquiar fatos compromete a essência do trabalho terapêutico. “Frequentemente, aquilo que é escondido é a chave de todo o sofrimento. É o nó que aperta todo o resto”, adverte o psicólogo e psicanalista Eduardo Oliveira. Sem acesso às informações centrais, a terapia pode aliviar sintomas periféricos, mas a angústia principal continuará intocada. “É como tentar curar uma febre tratando apenas o suor”, compara ele.

Doutor em psicologia social e professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG, Cláudio Paixão é enfático ao listar as consequências diretas da omissão: reduz a profundidade do trabalho, pois sem conhecer as causas genuínas dos problemas, a análise permanece superficial; impede intervenções específicas, uma vez que o terapeuta não consegue apontar padrões ou sugerir estratégias precisas se não tiver o quadro completo; e retarda ou dilui o progresso, pois o avanço que poderia ser significativo se torna lento e, por vezes, estagnado.

Ambos os especialistas concordam que é vital entender a terapia para além do simples desabafo. “Desabafar é como tirar a água de um barco furado com um balde. Traz um alívio imenso e momentâneo, mas não conserta o furo”, ilustra Oliveira. A terapia, por outro lado, é o trabalho de encontrar o furo, entender por que ele surgiu e repará-lo. “Não se trata apenas de falar, de verbalizar, mas é um espaço para refletir, para compreender o que a gente é, o que a gente sente, e para tentar promover mudança”, complementa Paixão. 

O professor define terapia como um espaço estruturado e colaborativo para refletir, compreender e promover mudanças ativas. Ele compara o processo a cuidar de uma planta. “A terapia é como regar uma violeta uma vez por semana. A ação é pontual, mas a planta continua seu processo de crescimento durante todos os outros dias”, diz ele, que completa: “A pessoa precisa estar inteira na sessão e, fora dela, levar os conteúdos para a reflexão”. Paixão explica que isso envolve compreender e, se necessário, mudar padrões de pensamento e comportamento, muitas vezes com “para-casas” que podem ser desde exercícios de escrita até atividades físicas.

É preciso entender, segundo Paixão, que o processo “atua em todas as dimensões da vida: relacionamento, autoestima, decisão profissional, valor, hábito, autoconhecimento”. Se o paciente espera uma “solução mágica” sem se implicar ativamente, dificilmente colherá os frutos. De acordo com os especialistas, a questão não é "ter que falar tudo", mas sim criar, junto ao terapeuta, as condições para que o "tudo" que realmente importa possa emergir. Como finaliza Eduardo Oliveira, “a coragem não está em confessar, mas em permanecer na cadeira, semana após semana, disposto a se encontrar”.