Tudo ao mesmo tempo

Cultura da urgência: Saiba quais são os sintomas de uma sociedade ansiosa

Para especialistas, ímpeto da aceleração pode gerar um comportamento nocivo

Por Da Redação
Publicado em 16 de agosto de 2021 | 04:00
 
 
Recursos digitais transformaram a rotina das pessoas em uma eterna urgência Foto: Pixabay/Divulgação

Hoje, para muitos, é difícil se imaginar sem o acesso a recursos que permitam a reprodução de conteúdos de áudio e de vídeo em modo acelerado. Essas ferramentas, presentes em plataformas de streaming, como o YouTube, a Netflix e o Spotify, e de conversas, como o WhatsApp, possibilitam que filmes, séries, podcasts e mensagens de voz sejam consumidos em velocidade até duas vezes maior. 
 
Para os entusiastas, esse tipo de ferramenta é bem-vindo, pois garante a otimização do tempo. Mas há também quem torça o nariz para o recurso. Esse grupo acredita que, além de ser um sintoma de uma sociedade ansiosa e refém de uma ideia nociva de produtividade, a aceleração dos conteúdos potencializa tais problemas. 
 
A especialista em comportamento humano e produtividade Carolina Jannotti lança um olhar crítico para esse ímpeto de aceleração. Ela alerta que um primeiro dano, pensando no aumento da velocidade de mensagens de voz, passa por potenciais perdas de nuances nas interações. “Há uma diferença no ritmo, alterações de entonação, nas pausas e até na respiração do locutor”, observa. “O resultado é que a comunicação se torna fria, distante, e se perde a qualidade dos relacionamentos”, opina. 
 
“Este é um movimento que talvez não tenha tantos prejuízos no início, mas, em longo prazo, pode gerar comportamentos nocivos. Ressaltam-se a criação de hábitos e o desenvolvimento de vícios emocionais. Nesse caso, o risco é o de se criar um padrão em que passamos a nos ver sempre correndo e nunca vivendo o momento presente. Acelerma-se o estudo, as conversas, as refeições, a intimidade, as relações, o dia a dia”, adverte. 
 
 
Cultura da urgência 
 
O psicólogo social Cláudio Paixão Anastácio de Paula observa que a busca desenfreada por produtividade – simbolizada por soluções que prometem melhorar a nossa relação com o tempo a partir da aceleração da reprodução de conteúdos – está plenamente incorporada à vida em sociedade na contemporaneidade. Citando a pesquisadora francesa Nicole Aubert, autora do livro “O Culto da Urgência”, ele indica que o fenômeno teria se iniciado nas rotinas laborais antes de invadir o cotidiano doméstico. 
 
“Sobretudo a partir do advento do digital, houve uma mudança em relação à percepção do tempo, afetando, primeiramente, os trabalhadores. A temporalidade das horas trabalhadas passa a ser atropelada por essa aceleração. Dessa forma, há a cobrança por uma entrega maior em um tempo menor. Assim, na medida em que a possibilidade de interação se tornou mais rápida, houve também uma mudança na percepção da fluidez de nossas tarefas, e passamos a nos entender como capazes de executar multitarefas simultaneamente”, comenta, inteirando que essa lógica deixou de habitar apenas o ambiente das empresas e passou frequentar os lares, principalmente após o surgimento dos smartphones. 
 
“Isso produz em nós uma busca por retorno imediato em relação a quaisquer assuntos. Por isso, vemos que as pessoas cobram respostas umas das outras constantemente. E elas também se cobram responder de imediato a essas comunicações”, observa, admitindo que esse padrão tende a gerar uma rede de cobranças, revelando-se um disparador de ansiedade, o que é potencialmente maléfico. 
 
Tanta pressa em responder e em ser respondido, em satisfazer a demanda do outro e em ter a sua demanda satisfeita vai desencadear “um engarrafamento de urgências”, assevera o psicólogo. “E, quando não conseguimos estabelecer o que seria a urgência de cada demanda, é natural que a gente dê o mesmo tratamento para todas. Além de aumentar os níveis de estresse, porque tudo se torna ‘para ontem’, há uma chance enorme de fazer as coisas mal feitas ou executadas de maneira incompleta. Tudo isso por consequência dessa pressa associada à execução de tarefas sobrepostas, a essa premissa do tudo ao mesmo tempo e agora”, critica. 
 
Outro problema relacionado à cultura da urgência diz da qualidade das nossas decisões. “Se estamos em um ritmo muito intenso, lidando com processos simultâneos e precisamos tomar decisões, tudo ao mesmo tempo, a tendência é que a gente vá agir sob pressão, e isso vai influenciar nossa capacidade de tomada de decisão. Se não temos tempo para respirar – para contar até dez, como dizem os mais antigos –, vamos decidir em um momento em que estaremos sequestrados pelas emoções, pelo estresse, pela ansiedade. Isso significa que nossa capacidade de fazer um julgamento ponderado, considerando diversas variáveis possíveis, estará ameaçada”, avalia. 
 
Ilusão 
 
Cláudio Paixão Anastácio de Paula adverte que, no afã de otimizar o tempo e de se ser altamente produtivo, à medida que a qualidade do trabalho se torna prejudicada e a capacidade de tomada de decisões fica comprometida, corremos o risco de, ironicamente, sermos menos produtivos. Sem falar nas possibilidades de ocorrência de síndromes e transtornos, como o burnout e a depressão. 
 
Na mesma toada, Carolina Jannot sentencia: “Engana-se quem pensa que ser multitarefa aumenta a produtividade”. Ela expõe que, quando nos alternamos entre as atividades, há um tempo mínimo gasto para retomar o foco.  
 
Além disso, ao contrário da lógica do “tudo ao mesmo tempo e agora”, Carolina sinaliza que, para ser efetivamente produtivo, é preciso apurar a capacidade de identificação e estabelecimento de prioridades. Com tanta pressa e com tanta tarefa sobreposta, o trabalho tende a render menos. “E fica a sensação de que nos cansamos mais e produzimos menos, o que é um gatilho para a ansiedade e o estresse”, examina.  
 
Estar presente. “É importante que a gente busque nutrir uma relação com o presente, e não com o imediato, que são coisas que podem parecer iguais, mas não são. Para estar no presente, eu preciso estar atento àquilo que estou vivenciando, saindo da superficialidade do imediatismo”, pontua Cláudio Paixão Anastácio de Paula.  
 
“A grande questão é que, hoje, precisamos aprender a conviver com esse mundo, com esse emaranhado de informações, que disputam nossa atenção. Talvez a solução passe por contemplar esse caos, se curando desse turbilhão de emoções, para, então, compreender o que é rotineiro, estratégico, crise ou urgência”, opina o psicólogo, acrescentando ser fundamental aceitar que nem tudo está sob nosso controle.