Autor do clássico literário “O Retrato de Dorian Gray”, o irlandês Oscar Wilde (1854-1900) é lembrado não só pela obra que deixou e por sua própria biografia, como também por uma citação banal, mas repetida à exaustão – e que, agora, soa datada. “Entre um homem e uma mulher não é possível haver amizade. É possível haver paixão, hostilidade, veneração, amor; mas amizade, não”, teria dito o escritor e dramaturgo em uma sentença reproduzida – às vezes como se fosse uma verdade, às vezes como polêmica vazia – por séculos.
Ainda hoje a máxima ressoa, gerando, em alguns casais heterossexuais, conflitos e inseguranças. “Infelizmente, é algo que aparece na clínica e que, a meu ver, tem relação com a forma como o patriarcado levou homens a entenderem as mulheres como pertencentes a eles, como expõe a intelectual Bell Hooks no livro “O Feminismo É para Todo Mundo”. E, se vista como inferior, a mulher deixa de ser digna da amizade, que é a troca de afetos. É como se voltássemos para a Grécia Antiga, em que a mulher tinha utilidades, servindo, por exemplo, para a procriação, enquanto o amor era reservado aos homens”, avalia o psicólogo Diogo Mendes, especializado em atendimento individual, de casal e de grupo.
O também psicólogo Samuel Silva concorda que a lógica por trás da frase atribuída a Oscar Wilde segue presente no dia a dia – e gerando perturbações afetivas. Ele sinaliza que esse pensamento é revelador do desejo de se estabelecer controle social sobre o desejo e o sexo. “Ao estabelecer que é perigoso que homens e mulheres sejam amigos, estou dizendo que somos seres primitivos, incapazes de conter nossas pulsões”, comenta, assinalando que pessoas proibidas de ter amizades por suas parcerias devem estar atentas. Este, afinal, é um indício de se estar vivendo uma relação abusiva.
Além disso, mesmo que siga reverberando em alguns contextos, a máxima de que não é possível existir amizade entre homens e mulheres faz ainda menos sentido à luz da diversidade. “Fico pensando nas pessoas que escapam à lógica cisgênero, como as não binárias e intersexo. Será que elas estariam liberadas para ter amizades ou será que só poderiam ser amigas entre si?”, questiona Mendes, pontuando como questões de gênero acabam sendo suprimidas pelo flagrante binarismo desse tipo de pensamento.
Para o também psicólogo Samuel Silva, a ideia de que pessoas de gêneros distintos não podem ser amigas por, supostamente, estarem sempre desejando “algo mais” tem como pano de fundo uma perspectiva LGBTfóbica ao desconsiderar que o desejo erótico não se dá apenas em dinâmicas heterossexuais. “Eu mesmo, na adolescência, podia dormir com meus amigos na mesma cama porque, para os adultos, por sermos meninos, não haveria atração entre nós”, comenta.
Não deixa de ser curioso que a própria biografia de Oscar Wilde coloque em questão a validade da frase atribuída a ele. Afinal, o escritor chegou a ser condenado por supostas práticas homossexuais, que eram consideradas crime à época. Ele sempre negou as acusações.
Por fim, o psicoterapeuta lembra que o desejo não é estático, mas, sim, fluido. Significa dizer que mesmo pessoas que se identificam como heterossexuais podem, eventualmente, desejar e ter relações homoafetivas. Portanto, toda e qualquer amizade implicaria, em alguma medida, no risco de que o sexo pudesse ocorrer.
E, afinal, por que o componente erótico só é desejável no contexto dos relacionamentos românticos?
Amizade colorida
“Obviamente, existem amizades sem sexo, ainda que exista a atração. E isso acontece porque conseguimos gerenciar esse desejo, de forma que, por mais que possamos achar uma pessoa interessante, ainda somos capazes de optar por não transar com ela. Mas… e se acontecer o sexo consensual, qual o problema? Por que, no contexto da amizade, o sexo é um problema e, no casamento, é uma obrigação?”, questiona Samuel Silva, especializado em atendimento ao público LGBTQIA+.
“Para refletir sobre essa crença, podemos questionar conceitos. O que é amizade? Será que, necessariamente, inexiste atração sexual nesse tipo de relação? E atração sexual, será que ela só pode existir nas trocas entre namorados ou em encontros casuais? E será que nós, principalmente os homens, somos incapazes de conter nosso desejo? E, então, será que, para sermos amigos, temos que ter certeza que não desejamos e nunca vamos desejar o outro porque não vamos conseguir lidar com isso?”, questiona o psicólogo.
Ele mesmo responde: “Se formos definir a amizade, vamos notar que esse é um conceito muito abrangente. Trata-se de uma relação entre duas ou mais pessoas, que interagem com maior ou menor frequência, em que há intimidade, interesses mútuos, respeito e consensualidade… Enfim, como podemos observar nesse exercício, esse tipo de vínculo é muito diverso e fluido, de forma que fica difícil dizer se nele cabe ou não cabe sexo”.
Diogo Mendes segue no mesmo sentido. “Não há nada de errado se, independentemente da orientação sexual da pessoa, ela opta por transar com um amigo. Nós estamos no século XXI, existem várias formas de se relacionar com o outro”, avalia.
Quando acontece, entretanto, essa experiência pode gerar confusão. “Fora do meio não monogâmico, misturar sexo e amizade ainda é um tabu tanto entre pessoas cisgênero e heterossexuais quanto entre pessoas LGBTQIA+. Se rola um episódio assim, as partes envolvidas podem não saber o que fazer. Essas pessoas costumam ficar angustiadas em um primeiro momento por imaginarem que, por causa daquele acontecimento, terão que deixar de ser amigas ou terão que partir para outro tipo de relação”, sinaliza Silva.
Roommates. Vale registrar que, em tempos de pandemia, principalmente nos períodos mais restritivos de quarentena, o sexo entre amigos se tornou mais comum. É o que sugere o levantamento “Singles in America”, realizado pelo grupo norte-americano Match.com – que está por trás de populares aplicativos de relacionamento, como o Tinder. De acordo com o inquérito, um quarto dos norte-americanos solteiros admitiu ter transado com “roommates” nesse período.
Benefícios. Outros estudos já indicaram que a prática pode ser até mesmo fortalecer vínculos. Uma pesquisa realizada pela universidade americana Boise State University, por exemplo, concluiu que o sexo tende a fortalecer as relações de amizade. Segundo a apuração, 76% dos entrevistados disseram que a amizade só melhorou depois da transa. Em 50% dos casos, o encontro erótico não se resumiu a apenas uma noite. Além disso, a metade das pessoas que admitiram já ter se relacionado intimamente com amigos disse ter engatado um relacionamento sério.