Para além de ser uma tradição repetida há gerações, neste ano, para a família da advogada Bárbara Faria, 34, o ato de decorar a casa para esperar o Natal ganhou dimensões novas. Cumprindo os rituais católicos, ela reuniu a mãe Maria Valéria, 59, e a filha Alice, 4,  para se dedicar à ornamentação do ambiente no primeiro domingo do Advento, tempo litúrgico que anuncia o nascimento de Jesus Cristo e começa quatro semanas antes do dia 25 de dezembro, portanto, no dia 29 de novembro. Há três dias, ela havia perdido um irmão para a Covid-19. “Como todo mundo, eu também tive um ano muito complicado, muito turbulento, principalmente agora, com a morte dele, que era como um pai para mim. Uma das formas que eu encontrei de distrair minha filha e minha mãe foi resgatando essa história de família e fazendo desse momento uma oportunidade de ficarmos juntas”, comenta. Babi escolheu cores fortes na intenção de colorir sua casa. “Foi uma forma de alcançar esse sentimento positivo que o Natal sempre ofereceu para nós. À noite, quando perco o sono, sempre acendo todos enfeites, ligo o Papai Noel e fico ouvindo as canções natalinas. É algo que me traz boas lembranças, que me remete a sentimentos bons”, reforça.

Ainda que com menos intensidade, outros relatos demonstram como os enfeites de Natal, antes vistos como algo quase supérfluo por parcela da população, ganharam, em 2020, um viés até mesmo terapêutico para muitas outras famílias. Em novembro um grupo de moradores de um prédio de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, por exemplo, questionou o estatuto do condomínio, que permitia que a decoração natalina que fica visível aos vizinhos fosse feita apenas a partir do dia 6 de dezembro. Em conversas pelo WhatsApp, eles destacaram que queriam iniciar antes as decorações por este ter sido um ano atípico, “com poucas ocorrências e notícias animadoras”, pois acreditam que a iniciativa traria um “efeito benéfico”, principalmente para as crianças que vivem no local. A administração fez uma enquete, em que ficou evidente que a maioria desejaria começar já a colocar guirlandas e pisca-piscas em suas janelas. Dois dias depois, os moradores puderam começar a ornamentar a fachada de seus apartamentos.

Esse “efeito benéfico” citado pelos condôminos da organização do ambiente encontra eco nas análises da psicóloga clínica Simone Miranda Felipe sobre o tema. Para ela, essa ambientação traduz o desejo de, por meio de dinâmicas externas, alcançar uma sensação de bem-estar, mesmo em dias mais atribulados. “Ao enfeitar a casa com coisas que me remetem a emoções positivas, estou tentando criar condições que facilitem que eu alcance um estado de contentamento”, resume. Neste sentido, considerando o período de turbulência, faz sentido o desejo de antecipar o erguer de árvores natalinas. “Para a maioria das pessoas, o 25 de dezembro é uma data que supõe a sensação de felicidade e de alegria. Então, quanto antes esse período chegar, melhor. Ao adiantar a montagem dos enfeites, é como se a gente se convidasse a sentir essas emoções mais cedo”, analisa a especialista em neuropsicologia e em terapia cognitivo-comportamental.

Memória afetiva é motor por trás de crescente interesse por enfeites de Natal

A psicóloga Simone Felipe observou no seu próprio prédio um maior apetite para a confecção e montagem desses ornamentos. “Vi muitas pessoas procurando quem faz aquelas bolinhas com fotografias das pessoas dentro, porque elas querem colocar as suas família na sua árvore. Percebi que houve mesmo um crescimento no interesse por esse costume”, situa. E são, principalmente, as memórias afetivas o motor por trás do fenômeno. “Esses rituais trazem consigo uma nostalgia, uma lembrança do passado. É uma forma de se disponibilizar a viver essas emoções que estão registradas no cérebro. E mesmo que se vá viver a tristeza da perda de um ente, é algo que se faz, nestes momento, por um viés de aspectos positivos”, examina.

É exatamente a dimensão de um luto em que a tristeza não é anulada, mas que se prioriza a valorização de boas lembranças que mobilizou a advogada Bárbara Faria a, junto de sua mãe e de sua filha, se dedicar aos preparativos para o Natal três dias depois da morte de seu irmão. “Na infância, lembro que minha mãe sempre cumpria esse ritual. Minha avó também. Ela fazia presépios artesanalmente. Recordo de a gente passear por Belo Horizonte, à noite, vendo as casas iluminadas. A gente ficava deslumbrada”, rememora, mencionando que, casada há três anos, manteve-se fiel ao hábito. “É algo que nunca abri mão. E minha sogra também enfeitava a casa toda, então isso é muito espontâneo para nós e minha filha, a Alice, que tem 4 anos, já está crescendo com esse costume também”, garante.

De tão apaixonada com decoração, Babi se tornou organizadora de eventos. Habituada a atender clientes nas mais diversas ocasiões, ela nota que os enfeites são parte importante de qualquer festividade. “O que motiva esse hábito é comemorar, marcar e registrar um momento especial. Existe um anseio de dividir experiências com outras pessoas, de criar um ambiente aconchegante, mas que também seja marcante. No Natal, não seria diferente”, opina. “Não só pela estética, é mais pelo apelo afetivo que está por trás desse ato, de que vai chegando o fim do ano e a gente vai deixando mais explícitos sentimentos que o 25 de dezembro, normalmente, traduz”, conclui, salientando que ver nesses dias especiais oportunidades para estreitar laços familiares. “Para minha filha está sendo algo ainda mais importante. Sem praticamente ir à escolinha neste ano, ela tinha momentos de estresse. Deixei ela participar de todo processo de decoração e isso virou uma grande distração, um passatempo”, atesta.

Costume tem viés terapêutico e poder curativo, diz coach

Seguindo pelo mesmo raciocínio, a coach de desenvolvimento de pessoas e bem-estar Marli Medeiros acredita que, para boa parte das pessoas, o Natal representa memórias de família, de momentos de confraternização e, para alguns, de religiosidade que podem ser reabilitadas neste momento. “É bom viver esse ritual e trazer à tona essas recordações e esses sentimentos associados a elas. São símbolos que trazem significados”, reflete. Ela acredita ainda que a montagem desses enfeites pode ter um efeito terapêutico. “É algo que é curativo, que pode apaziguar momentos de mal entendidos, que vieram com essa convivência contínua e inesperada daqueles que puderam e que ficaram em casa, precisando conviver por mais tempo”, argumenta, complementando notar, neste ano, um esforço maior de fugir de uma cartilha pautada pelo consumismo. “Noto que há uma valorização que não era tão comum da presença do outro, mesmo que à distância, o que pode nos fazer repensar o significado da data”, aponta.

A coach acredita que, para aqueles que têm emprestado mais relevância a uma tradição que poderia passar desapercebida em outros anos, o ato é reflexo e resposta a um momento diferente, “que mexeu com a vida da maioria das pessoas na maioria de suas áreas, principalmente no eixo familiar, pois os atravessamentos externos chegam também ao seio da família”, diz. “As emoções que tem vindo à tona são, na maioria, negativas. Não estou falando só sobre a Covid-19, como também da apreensão sobre a economia do país, emoções de relacionamentos, de perdas, de conflito, de medo. Isso tudo vem criando memórias, que acarretam uma outra pandemia que já estava em curso: a de sofrimento mental”, sustenta.

Nem sempre uma boa lembrança. A psicóloga Simone Felipe pondera que nem sempre Natal será sinônimo de boas recordações e sentimentos. “É importante lembrar que há pessoas que têm emoções discordantes ao que está estabelecido socioculturalmente para essa data, e que se sentem mal por isso. E essa ainda é uma época em que a gente tem o hábito de passar em revista se fomos produtivos, o que pode agravar essa sensação de mal estar, pois neste ano muitos planos foram adiados”, alerta.