Qual o propósito e até mesmo a sabedoria de se estudar cientificamente os milagres? Minha justificativa se liga ao argumento feito, no século XIX, pelo matemático William Clifford (1845-1879), em seu ensaio “A Ética da Crença”: “aquilo que você acredita ser verdade influencia suas decisões, e elas provocam efeitos sobre as pessoas ao seu redor e sobre a sociedade”. Nos últimos 200 anos, a ciência desvendou fenômenos e avançou nas explicações que põem em xeque interpretações literais da Bíblia e que dão conta de elucidar supostos milagres contemporâneos.
O livro não seria um ataque a esta ou àquela fé, seja individual ou coletiva? Essa obra não é um desafio à fé de ninguém. Em termos concretos, nenhuma fé verdadeira pode ser desafiada pela mera exposição factual. O que esse livro pode fazer, no entanto, é abalar as muletas, necessariamente já precárias, sobre as quais algumas pessoas vêm apoiando o que imaginam ser a fé que têm. O livro facilita o acesso do público às conclusões científicas sobre eventos tidos como milagrosos, explicando-os e contextualizando-os. Muitos tomam decisões importantes sobre as próprias vidas, e as dos que lhes são próximos, baseadas em mitologia travestida de história, em metáforas levadas a sério demais, em superstição posta como dado concreto.
Quais os principais fatos bíblicos que você, sob a lupa da ciência, refuta? O mar Vermelho nunca se abriu para os hebreus. Não houve pragas no Egito. O sol não parou no céu para ajudar o exército de Josué. O verso do Evangelho de Mateus com a profecia de que o Messias seria filho de uma virgem, na verdade, não passa de um erro de tradução. Epilepsia e enxaqueca provavelmente estão na origem das visões e profecias que deram impulso às mais influentes religiões do mundo atual. Isso pode parecer chocante, mas nada disso é realmente novidade. São fatos, em sua maioria conhecidos há décadas (quando não há séculos) por especialistas de diversos campos, incluindo os de história, arqueologia, linguística, psiquiatria, mitologia e, inclusive, teologia. Esses fatos, entretanto, não são fáceis de encontrar.
Há mais relatos? O Sudário de Turim é apenas mais uma pintura realizada no século XIV. Relíquias milagrosas, como o sangue de San Gennaro, ou são Januário, quase certamente não contêm sangue, mas um material parecido com o ketchup, e não passam de fraudes criadas séculos depois da morte dos mártires que pretendem representar. O número de pessoas que morrem a caminho do santuário de Lourdes, na França, é maior que o número de pessoas que são “milagrosamente” curadas. A mãe de Lúcia dos Santos, a visionária de Fátima, considerava a filha uma fraude. O “falar em línguas” dos neopentecostais e católicos carismáticos não representa nenhuma língua conhecida ou desconhecida, terrena ou celestial, trata-se apenas de livre associação de sons que simula a estrutura de um idioma natural.
Há algum milagre que você tenha pesquisado e não tenha encontrado uma explicação científica? Esta é uma questão bem interessante porque, exceto em casos em que uma investigação rigorosa se segue ao suposto evento milagroso – por exemplo, quando a investigação de uma estátua que parece chorar revela uma goteira bem em cima do altar –, nenhum milagre realmente tem “explicação científica”, no sentido estrito da expressão. O que se tem, na maioria dos casos (e isso se aplica a boa parte do que aparece no livro), são hipóteses científicas alternativas à hipótese sobrenatural. Nesse aspecto, nenhuma de minhas pesquisas ou investigações trouxe à tona um evento em que essa hipótese alternativa não pudesse ser formulada, em que o evento em si excluísse qualquer possibilidade de explicação natural. Geralmente, quando um milagre dá a impressão de exigir uma explicação exclusivamente sobrenatural, o que acontece é que a história está mal contada. As profecias de Fátima sobre a Segunda Guerra Mundial são um caso: elas parecem muito impressionantes para quem acredita que foram feitas em 1917, mas, quando investigamos, descobrimos que os primeiros registros delas por escrito datam de 1940.
De todos os “milagres” que você trata no livro, qual é o mais inverossímil? Qual te chamou mais atenção devido à precariedade do realismo? Os estigmas do padre Pio. Até mesmo a Igreja Católica da época em que ele viveu achava que eram falsificações; cito documentos e depoimentos a respeito no livro. Em segundo lugar, o Sudário de Turim.
Há episódios que se manifestam nos campos energético e espiritual, como a experiência de quase morte, desdobramentos astrais, entre outros. O que você tem a dizer sobre isso? Não diria que os fenômenos que você citou, como experiências de quase morte ou viagens astrais, sejam evidências de atividade espiritual ou energética, se estamos usando a palavra “energética” para nos referir a algum tipo de campo ou emanação que transcende a realidade física. Existem estudos conduzidos por pesquisadores de renome, como a psicóloga britânica Susan Blackmore, que indicam que esses fenômenos podem ser todos muito bem explicados como alucinações e episódios de criptomnésia (quando nos lembramos de um fato ou cena, mas nos esquecemos de que já tivemos contato com a informação antes: quem trabalha com texto tem esse problema o tempo todo, quando achamos que inventamos uma frase genial, mas na verdade estamos apenas “plagiando” algo que lemos), ou seja, pelo funcionamento interno do cérebro. Mas esses fenômenos são muito interessantes e renderiam até outro livro.
Por que as religiões precisam “fabricar” milagres? A maioria dos teólogos mais intelectualizados insiste que milagres são desnecessários – que a própria existência do universo e da vida humana já são milagres suficientes ou que a mensagem de amor, caridade e esperança é o verdadeiro ponto de apoio das religiões –, mas o fato é que igrejas que prometem curas e prosperidade atraem muito mais gente do que as que apenas pregam amor ao próximo. Então, do ponto de vista das religiões, oferecer “vantagens sobrenaturais” aos fiéis é uma questão de marketing ou, olhando do ponto de vista darwiniano, de sobrevivência: num ambiente onde existe liberdade religiosa, onde as pessoas são livres para mudar de religião na hora que quiserem, quem não oferece maravilhas desaparece.
E por que desaparece? Diria que é porque as pessoas buscam a religião quando se sentem desamparadas, quando têm medo das incertezas da vida, do futuro e da morte. O produto que a religião oferece é tranquilidade e conforto. Os milagres funcionam como uma espécie de sinal de que os vendedores daquela “marca” de tranquilidade e conforto – daquela religião em especial – realmente têm acesso aos meios de fornecer o que prometem.
Qual sua conclusão a respeito dos milagres? Quando uma ou mais teorias são capazes de dar conta do mesmo escopo de fatos, a opção entre elas é feita ou por conta das previsões que oferecem, ou pela simplicidade intrínseca. O mundo com milagres e o mundo sem milagres são virtualmente indistinguíveis em termos de previsões – quando divergem, é sempre a versão “sem milagres” que se mostra correta –, e o sem milagres é muito mais simples.
A jornalista Ana Elizabeth Diniz escreve neste espaço às terças-feiras. E-mail: anabethdiniz@gmail.com
“O Livro dos Milagres: O que de Fato Sabemos sobre os Fenômenos Espantosos da Religião”
2ª edição revista e ampliada
Carlos Orsi
Editora Unesp
154 páginas
R$ 46