Ainda antes de chegar ao catálogo da Netflix, o filme “Mignonnes” (“Lindinhas”, título da obra no Brasil) já era alvo de polêmica. Protagonizada por Amy, uma criança senegalesa criada em conformidade aos costumes de sua família, de tradição muçulmana, que, aos 11 anos, se muda para a França, a trama coloca em primeiro plano o choque entre tradição e modernidade enfrentado pela personagem. A menina, que é interpretada pela atriz Fathia Youssouf, logo encanta-se com o aparente empoderamento de colegas da escola em que estuda e que formam um grupo de twerk – um estilo de dança fortemente sensualizado. Aos poucos, ela se aproxima e passa a integrar o quarteto, com o qual busca disputar um campeonato da modalidade. Toda história se passa sob as lentes atentas da diretora Maïmouna Doucouré, que agora precisa lidar com uma onda de críticas à produção.
Em agosto, antes da estreia, a Netflix chegou a retirar de circulação um cartaz criado para divulgar a obra. À época, a provedora global de filmes foi acusada de, com o material, promover a erotização da infância. Com o lançamento, neste mês, as críticas ganharam novo fôlego. Nos Estados Unidos, grupos se organizaram e promoveram petições e apelos públicos para que o conteúdo seja retirado do catálogo da plataforma de streaming. Em outra frente, campanhas sugerem que, em protesto, usuários cancelem suas contas na Netflix. No Brasil, o governo federal decidiu intervir. No dia 21, o secretário Maurício Cunha, da Secretaria Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, pasta vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, solicitou a suspensão imediata do filme. O documento encaminhado à Comissão Permanente da Infância e Juventude (COPEIJ), ligada ao Ministério Público, fala em cenas de pornografia infantil e hipersexualização crianças.
Nome por trás do projeto, Maïmouna se defende, afirmando que “Mignonnes” é um “comentário social”. “Essas cenas podem ser difíceis de assistir, mas não são menos verdadeiras”, argumentou em entrevista ao jornal norte-americano “Washington Post”. A diretora detalha que o filme reflete resultados de uma pesquisa empreendida por ela no qual entrevistou cerca de cem meninas entre 10 e 11 anos. Ela própria, senegalesa e radicada na França, diz que a obra possui atravessamentos autobiográficos: “Durante toda a minha vida, fiz malabarismos com duas culturas: a senegalesa e a francesa. Como resultado, as pessoas frequentemente me perguntam sobre a opressão das mulheres nas sociedades mais tradicionais. E eu sempre devolvo: mas a objetificação dos corpos das mulheres na Europa Ocidental e nos Estados Unidos não é outro tipo de opressão?”.
A Netflix segue a mesma linha e define a obra como uma crítica à hipersexualização de crianças. Em nota oficial, a plataforma de streaming ainda lembra tratar-se de um filme premiado, “com uma história poderosa sobre a pressão que jovens meninas sofrem das redes sociais e da sociedade em geral enquanto crescem”. “E encorajamos qualquer pessoa que se importa com esse tema fundamental a assistir ao filme”, pontua.
Especialistas ouvidos por O TEMPO defendem que, de fato, o filme acerta ao colocar em pauta dimensões que, na educação formal ou doméstica, costumam ser silenciadas – principalmente no que se refere ao debate sobre a sociabilidade e a sexualidade. “Estamos assistindo a uma exposição assustadora das crianças e dos adolescentes nas redes sociais, e os pais parecem não saber o que fazer”, sinaliza a psiquiatra da infância e adolescência Luciana Nogueira de Carvalho. Ela acrescenta que o processo de engajamento nessas mídias se apresenta de várias formas e varia de acordo com a faixa etária, mas que não se deve desconsiderar que a erotização é uma forma de entrada em tais espaços. “O filme nos mostrou um fenômeno contemporâneo, e que bom que agora a questão está posta. Precisamos tratar desse assunto com mais rigor. No meu entender, todos os pais deveriam assistir”, opina.
Já o especialista em docência na educação infantil e pedagogo Sandro Vinicius Sales dos Santos alerta que as mídias digitais não são as principais responsáveis pela erotização dos corpos infantis – “elas apenas potencializam aquilo que já está impregnado na sociedade”, diz. O estudioso é crítico a uma postura que considerada censora em relação à produção. “O filme é uma produção artística e, enquanto obra de arte, é dotado de uma polissemia que permite diferentes interpretações”, considera.
Educação sexual é caminho para prevenção da hipersexualização de crianças
“Não é de hoje que grupos conservadores tentam incutir mudanças no campo das ideias, dos hábitos, dos costumes, das artes e, inclusive, nas ciências”, avalia Sandro Santos em referência à forma como, sob a justificativa de se evitar a hipersexualização de crianças, parcela da sociedade age para barrar a educação sexual nas escolas. Se, no caso de “Mignonnes”, a denúncia é de que o filme, sob pretexto de denúncia, busca normalizar a erotização da infância, no caso da instrução formal, a acusação é semelhante: a formação escolar poderia aguçar, precocemente, o interesse das crianças para o sexo.
Em oposição a essa lógica, o pedagogo salienta ser fundamental compreender a educação sexual não como doutrinação, tampouco como ensino de promiscuidade: “Estamos falando de um processo de autoconhecimento, que envolve a descoberta de limites e de possibilidades de relações com os outros, com os iguais, com os diferentes, mas, sobretudo, consigo mesmo”, avalia. Vale mencionar: no Brasil, não há diretrizes claras para a educação sexual. A Base Comum Curricular apenas recomenda que o tema seja discutido a partir do oitavo ano do ensino fundamental, de forma transversal
A consultora em sexualidade Aline Bicalho concorda. Para ela, o enfrentamento da hipersexualização de crianças passa, inclusive, pela disposição dos pais de quebrar tabus e falar mais abertamente com seus filhos sobre temas como gênero e sexo. “O problema é que a maioria dos jovens tem acesso à internet, conversam com os amigos, buscam informação em outros locais. Ou seja, os filhos aprendem sobre sexo cada vez mais cedo. Então, enganam-se os pais que acham que evitar falar sobre o assunto vai impedi-los de conhecer o universo sexual. Portanto, é muito melhor aprender de forma segura”, assevera. Ela ainda sublinha que, em uma sociedade hipersexualizada, em que se convive com constantes estímulos eróticos em diversas mídias, tanto a educação formal quanto a doméstica se tornam ainda mais fundamentais – ainda que mais desafiantes, pois a autoridade escolar e familiar passa a concorrer com outras diversas influências.
Vale lembrar que, de acordo com a Pesquisa TIC Kids Online, de 2018, 24,7 milhões de brasileiros entre 9 e 17 anos têm acesso à web. Trata-se de um contingente que corresponde a 85% da população nessa faixa etária que está permanentemente a um clique de encontrar uma vastidão de informações sobre a sexualidade na internet – o que inclui farta oferta de material pornográfico. E é bom frisar aos pais que, sim, é muito provável que seus filhos consumam conteúdo explícito. É o que explicita o estudo coordenado pelo pesquisador Pablo Gómez, da Universidade da República do Uruguai. Investigando hábitos de jovens moradores de Montevidéu, ele constatou que 66,3% deles já haviam visto cenas de práticas sexuais explícitas, contra 18,3% que disseram nunca ter visto – o restante preferiu não responder. Em média, é aos 13 anos que a maioria tem o primeiro contato com esse tipo de conteúdo – sendo 4 a idade mais precoce e 17 a mais tardia.
Crianças e jovens estão interessados em se informarem com pais e professores, mas, diante de omissão, vão à internet
Em 2019, quando apresentou os resultados do estudo em um simpósio no Brasil, Pablo Gómez falou à reportagem sobre o estudo por ele conduzido. O pesquisador apontou que “amigos pessoais, buscas na internet, conhecidos em redes sociais e outras redes” são as principais fontes desses jovens. Por outro lado, 70% deles nunca ou quase nunca “receberam orientações de docentes no centro educativo, em oficinas de sexualidade, de profissionais da saúde ou de algum adulto da família”. Resumo: “Eles valorizam as mensagens dos emissores tradicionais, mas, ao mesmo tempo, são esses os que menos enviam estas mensagens”, conclui o uruguaio.
Tal paradoxo é evidenciado em “Mignonnes”. Na trama, embora tópicos frequentes e que orbitam o universo das personagens – que consomem conteúdo pornográfico, praticam sexting (troca de mensagens de teor sexual) e demonstram engajamento nas redes sociais –, sexo e sexualidade são apenas veladamente tratados na casa de Amy. Nos 96 minutos de filme, somente em uma ocasião, quando tem a menarca, a tia e a mãe da protagonista falam, superficialmente, sobre o assunto. Mesmo na escola, a abordagem parece ser insignificante – a julgar pelas conversas das pré-adolescentes, que demonstram desconhecimento quanto a condutas que podem ser classificadas como estupro, sobre uso de preservativos e sobre infecções e doenças sexualmente transmissíveis (ISTs e DSTs).
A ausência de informações especialmente para meninas, aliás, é outra uma problemática que aparece de maneira transversal na obra e que é destacada tanto por Sandro Santos quanto Aline Bicalho. “A sexualidade dos meninos, desde bem pequeninos, é sempre muito pública e explícita, o que se estende para suas vidas adultas – enquanto homens. Tomemos como exemplo uma situação simples e corriqueira do nosso dia a dia: se saímos com um menino pela rua e este nos pede para fazer xixi, não hesitamos em baixar suas calças, permitindo que ele urine ali mesmo”, cita o doutor em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Entretanto, não fazemos isso com as meninas, nem de maneira negociada. Procuramos de modo tão breve quanto o possível, o banheiro mais próximo para que, no âmbito da reserva de seu corpo, ela satisfaça essa necessidade humana”, compara, apontando que as meninas são educadas a serem as principais responsáveis pelos usos e abusos realizados por terceiros em seus corpos.
Santos acredita que o combate à hipersexualização da infância passa, além de uma educação sexual efetiva, “pelo reconhecimento de que as crianças como sujeitos de formular suas próprias interpretações sobre o mundo a sua volta, e de que são seres sexuais, que desejam, que sentem prazer, que buscam descobrir o mundo, a cultura, seus corpos e a vida em toda a sua complexidade – e aqui é preciso pensar que a sexualidade infantil não possui as conotações da sexualidade adulta”, conclui.