Comportamento

'Lei do Stalking' cobre lacuna e criminaliza conduta cada vez mais comum

Na internet ou pessoalmente, prática de perseguição reiterada assombra principalmente mulheres e virou crime previsto no código penal

Por Da Redação
Publicado em 08 de abril de 2021 | 03:00
 
 
A apresentadora Ana Hickmann foi alvo de um stalker, que a ameaçou com uma arma e acabou morto pelo cunhado dela Foto: Reprodução/Instagram

No atentado sofrido em Belo Horizonte, em 2016, a modelo e apresentadora Ana Hickmann, ao se ver sob a mira de uma arma, imaginou que seria vítima de um assalto. Só mais tarde ela compreendeu que lidava, naquele momento, com um perseguidor obsessivo, um stalker. “Eu estava pronta para falar: ‘Eu tenho celular, tem quatro, cinco celulares aqui, tem computador, leva tudo, pode levar, leva tudo’. Eu estava pronta para fazer isso. Só que ele veio para cima de mim e começou a me ofender, a me humilhar e falar que me conhecia, que eu sabia quem ele era”, relatou a celebridade em uma entrevista dias após o incidente. O que parecia um caso isolado, contudo, se revelou um padrão. Apenas três anos após aquele episódio, Ana Hickmann voltou a relatar casos de perseguição na web. “Parece que isso está virando moda, não só comigo, mas com outras pessoas também. Meu amigo (o modelo e empresário) Léo Picon recebeu um vídeo horroroso nas redes sociais. Esses malucos às vezes acham que porque estão atrás de telas de computador ou de celular têm a liberdade de falar coisas e botar medo... E acham que não existe lei”, queixou-se.

A apresentadora acerta ao mencionar que, em sua percepção, casos de stalking vinham se tornando mais comuns. Segundo a delegada Isabella Franca, chefe da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerâncias da Polícia Civil de Minas Gerais (Demid/PCMG), a prática tem se tornado cada vez mais frequente, afeta principalmente as mulheres e acontece sobretudo na na internet. Além disso, a agente garante que o problema está longe de ser uma dor de cabeça apenas para os famosos. Entretanto, era difícil – até agora – enquadrar adequadamente a conduta de uma perspectiva criminal. 

Ocorre que, na última quinta-feira, entrou em vigor a Lei 14.132/2021, que tornou crime episódios de perseguição física ou digital em que há invasão da privacidade da vítima e ameaça à integridade física ou psicológica dela. Para Isabella, trata-se de um avanço importante. “O direito e a legislação devem acompanhar as mudanças da sociedade. Essas condutas vinham acontecendo, causavam grandes prejuízos, mas não havia forma de penalizar o agressor”, observa. “Até então, na maioria das vezes, poderíamos enquadrar essa prática como uma simples contravenção penal de perturbação de tranquilidade”, lembra a delegada. 

A defensora pública Silvana Lobo, diretora da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG), concorda que essa é uma atualização importante e necessária. “Tratar essa conduta como um crime implica reconhecer a sua gravidade”, diz, citando que, sem o novo instrumento jurídico, a pena máxima ao autor do que era apenas uma contravenção seria de 15 dias de detenção ou multa. “Mas dificilmente o julgamento chegava ao final, porque é comum que, nesses casos, as partes cheguem a um acordo em juizado especial”, explica. Com a nova lei, em caso de condenação, a pena-padrão é de seis meses a dois anos de prisão, mas pode chegar a três anos se a vítima for uma criança, um idoso ou se for uma mulher perseguida por ser mulher. Também são consideradas agravantes situações em que mais de uma pessoa se junta para perseguir alguém ou em que há uso de arma de fogo.

Abstrato. Silvana Lobo critica o fato de o tipo penal ser “muito aberto”. “Fala-se, na lei, que é crime perseguir alguém reiteradamente e por qualquer meio. Mas caberá aos juízes definir quantas vezes o ato de perseguição deve se repetir para ser considerado reiterado”, assinala, citando que, em alguns países, a ocorrência de dois episódios já seria suficiente para que a conduta seja classificada como stalking. 

“Além disso, é preciso que exista dolo, ou seja, o perseguidor deve ter a intenção de ameaçar a integridade física ou psicológica da vítima, invadindo a esfera de privacidade. Temos aqui um problema, porque, para alguns, a procura insistente pode ser interpretada apenas como carinho excessivo, enquanto, para outros, vai ser um problema. Então, mais uma vez, caberá ao julgador avaliar cada caso concreto”, pontua a advogada.

Dicas. Isabella Franca acredita que há possibilidade, inclusive, de prisões em flagrante pelo crime de stalking. Mas ela adverte que é necessário que a vítima denuncie o agressor. “É necessário que haja manifestação de interesse. Ou seja, a pessoa tem que procurar a delegacia e noticiar o fato para que seja instaurado o processo”, detalha. 

A delegada recomenda que posts em redes sociais, mensagens de qualquer meio e ligações telefônicas que provem a perseguição reiterada sejam armazenados. Também aconselha que se relacionem testemunhas que confirmem a ocorrência de visitas constantes e indesejadas da pessoa com comportamento stalker à vítima, seja em seu ambiente de trabalho, sua residência ou em outros locais.

Relacionamentos fantasiosos e até chip em carro

Antes de ser enviado para receber sanção, no dia 1º de abril, do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o projeto de lei da senadora Leila Barro (PSB), que levou à criminalização da prática de stalking, havia sido aprovado por unanimidade no Senado, em uma sessão que ocorreu, simbolicamente, em 8 de março, Dia Internacional da Mulher. A iniciativa é mais uma dedicada a pautas que combatem a violência de gênero no país, que, segundo dados do Mapa da Violência 2015, está entre os cinco com maior taxa de homicídio de mulheres em todo o mundo.

É diante desse cenário que a delegada Isabella Franca celebra ter um novo instrumento que busca punir a perseguição às mulheres. Embora, por ser uma tipificação nova, não existam estatísticas sobre o perfil dos stalkers, a agente policial acredita que, na maioria dos casos, assim como ocorre em episódios de feminicídio, os agressores são pessoas próximas ou que já se relacionaram com a vítima.

Isabella cita alguns casos investigados por ela que, hoje, poderiam ser enquadrados na nova lei. “Já descobrimos situações em que um ex-companheiro colocou um chip de rastreamento no carro da vítima. Como não aceitava o término, fazia parecer que, por coincidência, estava sempre no mesmo lugar que ela. Além disso, deixava sinais de que sabia dos locais onde ela havia estado. E isso começou a perturbá-la”, revela, acrescentando que, nessa situação, foi solicitada uma medida protetiva. “Mas não são todos os casos em que é possível acionar esses dispositivos da Lei Maria da Penha”, observa. Ela relata ainda ocorrência de pessoas que são perseguidas por desconhecidos. “Gente que criava perfis fake, que fingia estar se relacionando com a vítima nas redes sociais, criando até mesmo uma namoro fantasioso. Nesses casos, tínhamos uma configuração criminal específica”, pontua.

Definição. Em uma publicação na “Revista Jus Navigandi”, em 2008, o jurista Damásio Evangelista de Jesus já definia stalking como “uma forma de violência na qual o sujeito ativo invade a esfera de privacidade da vítima, repetindo incessantemente a mesma ação por maneiras e atos variados, empregando táticas e meios diversos: ligações nos telefones celular, residencial ou comercial, mensagens amorosas, telegramas, ramalhetes de flores, presentes não solicitados, assinaturas de revistas indesejáveis, recados em faixas afixadas nas proximidades da residência da vítima, permanência na saída da escola ou do trabalho, espera de sua passagem por determinado lugar, frequência no mesmo local de lazer, em supermercados etc”. 

O autor acrescenta que “o stalker, às vezes, espalha boatos sobre a conduta profissional ou moral da vítima, divulga que é portadora de um mal grave, que foi demitida do emprego, que fugiu, que está vendendo sua residência, que perdeu dinheiro no jogo, que é procurada pela polícia etc.”. Assim, ele vai ganhando “poder psicológico sobre o sujeito passivo, como se fosse o controlador geral dos seus movimentos”, completa.