Sexo não é novidade. E, para a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em sexualidade, a forma como o praticamos também não é nova, mesmo que apresente roupagens atuais. É o que ela chama de neossexualidades – formas emergentes de se relacionar, como o sexo virtual. Além disso, comportamentos que eram considerados um problema para a psiquiatria até pouco tempo, agora só são casos para consultório se incomodarem quem os pratica.

“Vários comportamentos deixaram de ser considerados sempre patológicos e passaram a ser considerados assim quando o indivíduo sofre e busca acompanhamento. E, quando não houver consentimento entre as partes, é sempre patológico”, explica. 
Práticas como o sadomasoquismo (prazer sexual na dor) e o fetichismo (excitação por objeto inanimado) já não justificam intervenção clínica, a não ser que incomodem um dos parceiros. E, por serem crimes, a pedofilia, o voyeurismo (excitação por observar sem ser visto) e o frotteurismo (excitação por esfregar-se em alguém sem permissão) são inaceitáveis.

A transexualidade também não é mais um transtorno de identidade por si só. “Hoje, vamos cuidar dessa pessoa porque existe um sofrimento”. O que mudou o cenário foram os principais guias de diagnóstico utilizados pelos psiquiatras: o novo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (o DSM-5), em 2013, e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11), em 2018. 

Carmita apresentou os temas na XXI Jornada Mineira de Psiquiatria, em Belo Horizonte, e conversou com O TEMPO sobre a sexualidade no Brasil de 2019. 

O que exatamente é a neossexualidade?

O que a gente chama de neossexualidade são as novas formas de revestir-se da sexualidade, mas que não são de fato novas. Hoje, elas são mais visíveis, mais conhecidas da população em geral – não que ela não as praticasse, mas não se comentava certas formas de viver a intimidade. Agora, elas vão se tornando mais perceptíveis, a partir das mídias sociais e dos meios de comunicação.

Consequentemente, vamos sabendo que aquelas formas mais convencionais do exercício da sexualidade não são as mais comuns ou pelo menos não as únicas expressões dentro de uma gama de várias possibilidades. Isso influencia, inclusive, como a medicina e em especial a psiquiatria percebem o indivíduo.

A senhora fez uma pesquisa sobre hábitos sexuais e afetivos do brasileiro em 2008 e outra em 2016. O que mudou? 

As mulheres passaram a fazer mais sexo sem compromisso assumido. Eram 43%, passaram a 57%, e o número de homens também aumentou. E, na pesquisa de 2016, a gente percebeu comportamentos de homens e mulheres relacionados ao sexo virtual, claro que muito mais nos homens do que nelas. Enquanto um terço deles tem essa prática mais rotineira (mas não compulsiva), 9% das brasileiras têm.

Outra coisa para a qual se deve alertar é a iniciação sexual virtual por muitos meninos, que protelam a iniciação presencial porque começam pela virtual e lá ficam um, três, cinco anos. 

E o que isso causa?

Eles passam a ter dificuldade no sexo com outra pessoa, porque se acomodam nessa condição de sexo virtual. Um novo quadro se apresenta para os garotos: a iniciação não exatamente com garotas de programa ou colegas de escola, do bairro ou do clube, mas virtualmente. E aqueles que têm predisposição acabam ficando mais presos, reféns dessa situação. E quando vão fazer sexo real, às vezes após cinco, seis anos fazendo sexo virtual, apresentam falhas de ereção porque não têm esse hábito. Aí, já são pessoas mais velhas, mas que funcionam como adolescentes, porque não têm a experiência da parceria.

Existe alguma particularidade sexual dos brasileiros?

Essa diversidade toda faz parte da nossa cultura, nós somos um povo que tem prática sexual, especialmente os jovens. E, como o casamento está se tornando cada vez mais protelado, fazer sexo com parcerias sucessivas e múltiplas vem se tornando uma prática entre homens e mulheres, porque só vão se casar após os 30 anos. Em contrapartida, a iniciação sexual é muito precoce hoje. Vemos garotos de 12 anos que estão iniciados, e não com pequenas intimidades, mas com prática completa. Então, temos sexo fora da união estável, fora do casamento, durante mais de 15 anos – considerando que a pessoa começa aos 14 e não estabelece união antes dos 30. Mas não é uma mudança própria do Brasil e, sim, tendência mundial.

E algo que chamou sua atenção no país especificamente?

Temos uma afinidade maior pela internet, especialmente as mulheres brasileiras, comparadas à média. Os homens têm um interesse grande pelo uso da internet para as mais diversas formas de relacionamento virtual: hétero, homo, entre pessoas mais velhas, relacionamentos bastante diversificados. A mesma pessoa não busca o mesmo padrão o tempo todo, isso é que chama atenção. Quanto ao sexo presencial, a gente sabe que existe um contingente de comportamento parafílico (como sadomasoquismo e fetichismo) que é bastante usual, pelo menos até o ponto em que a gente conseguiu captar, porque as pessoas não declaram abertamente. Eles fazem parte de pelo menos um período da vida da pessoa ou acontecem eventualmente.

Como está o Brasil sexualmente hoje em dia?

O mundo nos considera com sexualidade muito acima da média. Somos reconhecidos como um país onde a atividade sexual é a mais livre possível. Mas, na verdade, não fugimos tanto do que é conservador. Nossa sexualidade não é aquilo que muitas vezes se considera. Diria que a gente é visto com muito mais benevolência, exuberância e tranquilidade.

Então disfarçamos conservadorismo?

Manifestamos comportamento nas nossas comemorações, nas nossas festas. O Carnaval, por exemplo, dá impressão de extrema tranquilidade com esse assunto, mas a gente é um povo que tem necessidade de conhecer mais. Você consegue viver sua sexualidade de forma mais tranquila na medida em que a educação lhe dá mais elementos para não acreditar em mitos, tabus e conceitos errôneos. Na medida em que nos tornamos um povo mais diferenciado do ponto de vista da educação, vamos vivendo uma sexualidade melhor. Porque a educação, além de derrubar mitos e tabus, leva a pessoa a saber quais são seus bloqueios e se eles são de ordem emocional ou física. A educação é importante para a saúde e para a saúde sexual. Na medida em que nos conhecermos melhor e soubermos as questões que nos afetam, vamos viver nossa sexualidade de forma mais adequada também. Muitas das nossas dificuldades têm a ver com desconhecimento e falta de entendimento sobre o que é a sexualidade. 

Qual é o futuro do sexo?

Eu acho que ele vai andar com nosso progresso em termos de educação e saúde. Sem dúvida, ele é um indicador. Um povo que consegue viver sua vida sexual equilibrada, sem tantos problemas, é porque está educado de forma geral e consegue aplicar isso. E também tem saúde para esse exercício ser o mais compatível com o que gostaria sem abrir mão de sexo consensual. Sexo tem que ser consensual.