Expectativa e planejamento eram sentimentos que se misturavam àquela altura: com exatas 38 semanas e cinco dias de gestação, a mala de maternidade estava no carro e, as roupinhas de Francisco, devidamente lavadas. O parto, uma cesárea, estava marcado para o dia seguinte, 12 de junho de 2013, data em que se celebra o Dia dos Namorados no Brasil. Tudo parecia correr bem quando, na véspera, a jornalista Letícia Murta, hoje com 40 anos, foi a uma consulta de rotina. Na maca, idealizava o amanhã enquanto controlava sua respiração à maneira como era conduzida pelo médico ultrassonografista, o mesmo que acompanhava seus exames desde o pré-natal. Então, veio a notícia: o profissional informou a ela que não conseguia ouvir os batimentos cardíacos do bebê. Ele usou outros equipamentos de auscultação e, em seguida, confirmou: Francisco não estava mais vivo. 

Uma tragédia particular comunicada sem qualquer tato, deixando Letícia em estado de choque, desesperada. “Calma, você é nova ainda, poderá ter outro”, disse o médico na tentativa de trazer conforto. Palavras que, para além da genuína intenção de oferecer algum consolo, revelam o despreparo da sociedade e, em especial, das equipes médicas quanto à lida com a dor do luto vivenciado por mães que sofreram perda gestacional ou perinatal. Um calvário que, aliás, segue em ato contínuo: como é de praxe na maioria das maternidades do país, depois de realizada a cirurgia, Letícia, abalada pela morte de Francisco, foi conduzida ao mesmo ambiente em que outras famílias comemoravam o nascimento dos seus.

Duas em cada 10 gestantes perdem seus filhos antes do nascimento e muitas delas, a exemplo do relato de Letícia, convivem silenciosamente com uma sequência de procedimentos pouco empáticos desde o momento em que recebem a notícia do óbito até depois de terem alta médica. É o que assegura a ginecologista e obstetra Mônica Nardy, completando que, tamanho tabu, tantas sequer são avisadas que, por meio de exames no tecido da placenta ou no bebê, seria possível investigar as causas da morte – fato que ajuda a explicar o porquê de inexistirem explicações médicas para até 30% dessas perdas.

Nas estatísticas médicas, como se percebe, tais episódios são mais comuns do que se poderia imaginar para um tema tratado, normalmente, de forma tão velada. Um assunto que ganhou projeção, recentemente, pela voz da multiartista Mariana Rios, que rompeu esse pacto de silêncio e falou publicamente sobre a morte de seu filho durante a gravidez. 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por Mariana Rios 🧿 (@marianarios) em 13 de Jul, 2020 às 1:55 PDT

Em resposta a esse cenário de flagrante silenciamento e descaso, a fim de prestar assistência às mães que perderam seus filhos durante a gestação e para oferecer treinamento para profissionais da medicina, Mônica se juntou a uma equipe multidisciplinar de mulheres – entre elas a fotógrafa de famílias Paula Beltrão, a doula Bel Cristina e a enfermeira Nívea Brandão – que, juntas, formaram o Grupo Colcha, que atua há cerca de três anos em Belo Horizonte.

Grupo se articula para criar protocolos médicos mais empáticos

Movidas pela inquietação em relação ao tratamento dispensado a essas mulheres, elas se inspiram no modelo de assistência de uma instituição de caridade do Reino Unido -– a Stillbirth and neonatal death charity (Sands) – que fornece, há 40 anos, apoio a qualquer pessoa afetada pela morte de um bebê durante qualquer idade gestacional. “Em janeiro de 2019 fui para Londres e pude estudar e entender melhor como esse trabalho era desenvolvido”, explica Paula Beltrão, uma das idealizadoras do projeto.

Ela cita que o Grupo Colcha vem trabalhando na elaboração de protocolos sobre o tema, de forma que possam ser adotados, inicialmente, em Belo Horizonte. “A gente ia começar, neste ano, a realizar treinamentos internos em maternidades, mas os planos foram suspensos em razão da pandemia”, diz, lembrando que, ao longo desses quase três anos de atividades, elas já vinham trabalhando diretamente com a orientação de equipes médicas.

A fotógrafa já desenvolvia um trabalho de acolhimento antes mesmo de o grupo ser criado. Uma das formas de apoio ofertadas por ela se dá pelo registro desses momentos. “Não são apenas fotos de um bebê: são fotografias de um amor muito intenso, de uma conexão de mãe e filho, de pai e filho, de uma conexão que existe, de uma família que se formou e de uma despedida. É uma lembrança que muitas famílias põem em seus porta-retratos”, expõe. 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por Paula Beltrão (@paulabeltrao_photography) em 25 de Jun, 2020 às 6:12 PDT

Embora a princípio possa haver alguma relutância, é comovente o retorno que Paula costuma receber pelos serviços que presta. “Para viver o luto de forma sadia, essas pessoas precisam fechar um ciclo e ter onde chorar ajuda. Eu recebo mensagens de mães muito agradecidas, que dizem ter encontrado nas fotografias um lugar de conforto, pois, quando contam para alguém, a dor delas parece muito distante e, nas imagens, elas conseguem concretizar o que estão sentindo”, situa.

Além do constante desconforto, grupo se formou a partir de uma perda gestacional

A iniciativa é, antes de tudo, uma reação de profissionais que, cotidianamente, convivem e presenciam o sofrimento dessas mães. O grupo teve como pilar fundante a solidariedade manifesta por elas quando uma das fundadoras lidou, ela própria, com uma perda perinatal: Mônica Nardy, não apenas da condição de médica, também fala da perspectiva de uma mãe que, há três anos, precisou lidar com a sensação de um luto socialmente deslegitimado pela morte de Cecília na 39ª semana da gestação.

“A minha vivência na maternidade foi péssima. Eu via as famílias ganhando neném e eu estava perdendo”, recorda. Ela lembra que, naquele momento de fragilidade, foi fundamental a presença de pessoas como a doula Bel Cristina, que ela sequer conhecia pessoalmente e que logo se ofereceu para realizar um escalda pés, quando puderam conversar e surgiu a fagulha que, dias depois, se tornaria o Grupo Colcha.

Tamanha é a debilidade no manejo dessas pacientes que é fácil encontrar relatos de mulheres que receberam cumprimentos pelo nascimento de um filho que perderam há pouco – congratulações vindas, inclusive, de profissionais da saúde, que, desavisados, chegam a perguntar quando é que deverão levar o bebê para que seja amamentado. 

Advertindo não se tratar de uma exceção, Mônica aponta que, no caso dela, até mesmo a condução do parto foi equivocada: “Fui levada para a cesárea de imediato, mas para mim o ideal seria o parto normal. Depois, apenas vi ela rapidinho e só tenho uma foto, que pedi a enfermeira para tirar”.

Sem acolhimento, experiência de luto fica comprometida e gera adoecimento

A ausência de diretrizes mais empáticas sobre a condução de mulheres que tiveram perdas gestacionais e perinatais e a falta de uma estrutura de acolhimento têm levado essas mães a enfrentar um processo de luto conturbado. Em muitos casos, afinal, elas precisam lidar com a morte sem ter acesso a rituais simbólicos de despedida e precisam, constante, legitimar sua própria dor.

“Nós ainda não temos um sistema de saúde que comporta um bom acolhimento para pacientes que sofreram uma perda durante a gravidez, que pode acontecer em qualquer idade da gestação, seja de poucas semanas ou até um natimorto”, avalia a psicóloga familiar Daniela Bittar. 

“As maternidades brasileiras não têm condições estruturais de receber essas mulheres, não têm alas para elas, que ficam no mesmo ambiente daquelas que têm os filhos vivos. Elas são impedidas de vivenciar o parto de forma ideal e de realizar ritos simbólicos, porque são desencorajadas a ver seus bebês pois os médicos pensam que, assim, não vão criar vínculos – ignorando que esses vínculos já existem. Existe um desejo de fazer tudo muito rapidamente, como se a dor estivesse restrita a aquele momento”, completa a profissional que é integrante da Sentir Mulher, a primeira clínica de psicologia e psiquiatria especializada no atendimento de demandas gravítico gestacionais e que também passou a integrar a equipe do Grupo Colcha.

Perda é socialmente deslegitimada e mães precisam lutar pela memória de filhos

Os tabus em torno da morte dos filhos antes do nascimento não estão circunscritos aos limites físicos das maternidades, como evidencia o testemunho de Letícia Murta. Ao voltar para casa – mesmo reconhecendo ter recebido, de amigos e da família, o que classifica como um apoio fundamental –, ela continuou sentindo constantemente deslegitimada a sua experiência de luto.

“O sentimento de que meu filho era substituível se seguiu. As pessoas, ao dar os pêsames, sempre diziam que eu poderia ter outro”, comenta. “Meu filho foi enterrado, houve um velório e foi feita a certidão de óbito. Ele existiu não só para mim, mas para o mundo. E eu tentava explicar isso, mas acho que pouca gente, ainda hoje, consegue entender”, completa, salientando que, para aquelas que perdem o bebê em semanas iniciais, a falta de acolhimento e de empatia é ainda maior.

“Nunca deixei que a existência dele fosse ignorada e a maneira de lidar com essa perda foi legitimando a minha dor e a existência dele. Ele existiu como pessoa, existe hoje como amor”, explica Letícia, que passou a frequentar grupos de mulheres que também perderam seus filhos ainda no útero. Foi neste ambiente que se sentiu idealmente acolhida e em que percebeu genuína empatia. “Aquelas pessoas que também passaram por isso me ajudaram a levantar nos dias mais difíceis”, lembra, agradecida.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por Grupo Colcha (@grupo_colcha) em 13 de Jul, 2020 às 5:35 PDT

O acumulado de situações de negligência, explica Daniela Bittar, pode gerar traumas e, por isso, muitas dessas mulheres acabam vivenciando um luto patológico e outros distúrbios psiquiátricos, como a depressão, o transtorno de estresse pós-traumático e o transtorno de ansiedade generalizada.

“O luto de uma mãe dura o tempo que dura um filho e, para a mãe, o filho dura para sempre”, explica a psicóloga, que prossegue detalhando o que torna um luto patológico: “A primeira fase é quase fisiológica: ela pode não reconhecer se é dia ou noite, ficar sem ar, perder a fome e não conseguir sair da cama. O início do luto deve ser preservado e não deve ser medicado – a menos que haja fatores prévios. Vai ser considerado patológico se a mulher demonstrar comportamento disfuncional, isto é, se ela não consegue formar raciocínio lógico, se não consegue tomar banho sozinha, se já se passaram meses e ela ainda não consegue sair da cama”, completa.