O trauma é a causa do sofrimento mais negada, ignorada, pouco entendida, confundida e malcurada, atesta um dos maiores especialistas no assunto, o médico e terapeuta norte-americano Peter Levine. Apesar de o ser humano ser biologicamente programado para experimentar, suportar e sobreviver a rejeições, lidar com esse tipo de sentimento, principalmente na infância, pode gerar feridas psicológicas que v ão acompanhar a vítima até a fase adulta.

No livro “Emotional First Aid” (“Primeiros Socorros Emocionais”, em tradução livre do inglês), o psicólogo norte-americano Guy Winch mostra, com estudos feitos usando exames de ressonância magnética, que a dor da rejeição ativa no cérebro as mesmas áreas que a dor física. Esse tipo de marca, segundo a coach e educadora Suely Buriasco, pode criar feridas profundas que prolongam o sofrimento pela vida inteira. “A baixa autoestima e a vitimização impossibilitam a satisfação e tornam a pessoa dependente emocionalmente. O pior é que essas pessoas acabam acreditando que não merecem nada de bom e se submetem a todo tipo de atrocidade e exploração”, diz.

De acordo com a Associação Brasileira do Trauma, esse tipo de abalo psicológico nem sempre tem associações óbvias com o evento gerador (como no caso de um assalto ou sequestro), mas pode vir da uma resposta do sistema nervoso ao acontecimento. Quando a pessoa não tem condições de reagir a um perigo, a resposta fica “incompleta”, o sistema nervoso se desorganiza, e aí o trauma se instala.</CW>
Recentemente, um casal foi condenado a mais de 30 anos de prisão em São Paulo por agredir e torturar uma criança de 10 anos. Por quatro anos seguidos, a garota teve a língua cortada, as unhas arrancadas, o corpo ferido por não “realizar direito as atividades domésticas” e por se referir à progenitora como “mãe”.

Infelizmente, a menina é uma entre as incontáveis pessoas que sofrem silenciosamente pelo país e pelo mundo. Atualmente, a criança está sob os cuidados da ONG Ciranda para o Amanhã, em São Paulo, que tenta intermediar tratamentos e cirurgias para “apagar” as inúmeras marcas deixadas pelos maus- tratos. O maior trabalho dos especialistas, no entanto, é ajudar a menina a livrar-se da rejeição.

“A gente oferece apoio e oportunidades para eles superarem (os traumas) e reescreverem suas histórias de diversas formas. A gente costuma dizer que o passado não estava nas mãos deles, mas o futuro está. Então, é um trabalho de formiguinha para resgatar a autoestima e fazer com que eles caminhem com autonomia e felizes. Esperamos que, saindo as marcas físicas, ela (a vítima) possa se sentir melhor com ela mesma”, diz a sócia-fundadora da ONG, Nubia Forestieri. A instituição ajuda outros 19 abrigos e cerca de 350 crianças e adolescentes de até 17 anos.

Personalidade. Ser amado ou rejeitado pelos pais afeta a personalidade e o desenvolvimento das crianças até a fase adulta, segundo uma pesquisa recente feita pela Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, que estudou o poder da rejeição. O trabalho revelou ainda que essa negligência em relação à criança é mais sentida se vier do pai.

O abandono paterno é a primeira e mais forte lembrança de rejeição da analista de sistemas Flávia Cunha, 30. “Ele entendeu que se separar da minha mãe significava romper laços também comigo. O momento que me senti mais rejeitada foi quando ele se casou novamente, e a nova esposa exigiu que ele fizesse um exame de DNA para confirmar ser meu pai. Nesse momento senti uma dor física, emocional e profunda, que até hoje não se curou completamente”, conta.

Flávia acredita que rejeições como a que ela sentiu marcam para sempre a forma de ver o mundo e as pessoas, mas cabe a cada um decidir o que fazer com isso. “Procuro entender que cada um dá aquilo que tem”, diz.

 

Sofrimento não escolhe classe social, mas tratamento exclui mais pobres

 O sofrimento causado pela rejeição dos pais não escolhe classe social, mas um abismo separa as vítimas de famílias ricas e pobres com relação ao acesso aos tratamentos, diz o gerente executivo da National Association for Children of Alcoholics (Nacoa) no Brasil, Marcelo Brunstein. Ele critica a falta de políticas públicas para a população mais fragilizada. “O ideal seria um trabalho preventivo e o atendimento da família como um todo”, diz.

Pessoas que sofreram com a rejeição na infância e que não aprenderam a lidar com sua dor tendem a transmitir a própria vivência de abandono emocional aos filhos, que, por sua vez, assimilarão a sua maneira, diz a coach Suely Buriasco. Pais em situação de dependência (de álcool ou drogas) estão mais propensos a ampliar a dor da rejeição nos filhos.

Estudos internacionais mostram que filhos de adultos dependentes têm maiores chances de desenvolver distúrbios psicológicos, além de apresentarem índices mais altos de suicídio e vício, segundo Brunstein. “É comum filhos de famílias ricas conviverem com o estigma da dependência e a vergonha de falar que o pai ou mãe tem problema com álcool e drogas, e isso acaba adiando a busca por ajuda”, diz. Normalmente, aos menos favorecidos economicamente resta a sorte de receber o apoio de algumas ONGs. (LM)


Solidariedade

Artesã cria canal que oferece um suporte online

O trauma psicológico tem cura e pode ser um portal para o autoconhecimento, conforme texto publicado pela Associação Brasileira do Trauma. Ainda de acordo com a publicação, o terapeuta norte-americano Peter Levine diz que o ser humano pode aprender a se adaptar às situações de ameaça e, ao sair desse estado de imobilidade, tornar-se mais forte para lidar com os eventos futuros.

A artesã cearense Virna Maria Soares, 56, ainda não superou as várias rejeições que sofreu ao longo da vida, mas há pouco mais de cinco anos ela resolveu criar na internet um canal de apoio mútuo. Hoje seu maior sofrimento é a rejeição do filho, tema de sua página no Facebook, mas outros episódios também deixaram marcas dolorosas em sua trajetória.

Aos prantos, ela lembra que foi rejeitada pelo pai logo quando nasceu. “Minha mãe também não pôde ficar comigo, e fui criada pelos meus avós. Na adolescência, meu primeiro namorado também me rejeitou. Depois fui abandonada grávida, e meu outro companheiro, com quem vivi 16 anos, me rejeitou. Como era muito imatura, acabei me separando do meu filho, que cortou relações comigo até hoje”, conta.

Virna já participou de grupos de apoio, fez acompanhamento psiquiátrico e espiritual, mas acredita que só quando voltar a conviver com o filho vai superar esse trauma. “Preferia ter um filho malcriado do que a rejeição dele”, desabafa. (LM)