A poucas horas do início da reunião de cúpula do G20, marcada para a manhã deste sábado (9), negociadores em Déli ainda não tinham conseguido redigir um comunicado comum sobre o encontro. Caso não cheguem a um acordo, será a primeira vez na história do grupo que isso acontece, pondo em xeque a viabilidade do bloco que reúne as 19 maiores economias do mundo e a União Europeia (UE).

O Brasil, ao lado de Índia e África do Sul, tentava até o último minuto costurar um texto alternativo sobre a Guerra da Ucrânia que fosse aceitável tanto para a Rússia quanto para os Estados Unidos e a UE - e, assim, poupar o governo indiano da frustração de sediar a primeira reunião do G20 que termina sem consenso.

Segundo negociadores ouvidos pela Folha de S.Paulo, o conflito no Leste Europeu é o único ponto de desacordo entre os países.

Apoiados por outros membros do G7, EUA e UE exigem que os documentos incluam menções à "agressão da Rússia contra a Ucrânia", demandam "a retirada total" das tropas russas do território ucraniano e classificam de "inadmissível" o "uso ou ameaça de uso de armas nucleares ". Mas os russos - representados pelo chanceler Serguei Lavrov, uma vez que o presidente Vladimir Putin não viajou para o encontro - recusam-se a assinar um comunidado que inclua trechos do tipo.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pousou em Déli às 21h04 desta sexta-feira (8), acompanhado da primeira-dama, Janja, do chanceler Mauro Vieira e do assessor especial da Presidência para relações internacionais, Celso Amorim. Seguiram direto para o hotel Taj Palace, onde se hospeda a delegação brasileira.

No sábado, Lula terá reuniões bilaterais com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman. Lula pode enfrentar saias justas em ambos os encontros - enquanto uma foto com o líder saudita, acusado de mandar esquartejar o jornalista de seu país Jamal Khashoggi, poderia ser alvo de críticas, Erdogan pode pressioná-lo a se pronunciar a respeito da situação dos armênios em Nagorno Karabakh. A Armênia acusam o Azerbaijão de promover um genocídio ao bloquear o contato do enclave com o mundo exterior. A Turquia apoia os azeris.

No fim da tarde, antes do jantar de honra da cúpula, Lula participa do lançamento da Aliança Global de Biocombustíveis, criada para estimular a produção e o consumo do etanol no mundo. No total, 19 países participarão da iniciativa, cujo evento em Déli contará ainda com a presença de Joe Biden, presidente dos EUA, e Narendra Modi, primeiro-ministro indiano.

Evandro Gussi, presidente da União da Indústria da Cana-de-Açúcar e Bioenergia (UNICA) que também está na capital indiana, diz que, ao unir mais países em torno do etanol, a iniciativa traz novas oportunidades de desenvolvimento.

No jantar, Lula e os outros chefes de Estado vão experimentar pratos típicos da culinária do anfitrião da cúpula do G20 este ano e especialidades feitas com milheto, também conhecido milho painço. A Índia é a maior produtora mundial da variedade, considerada mais adaptável à crise climática por crescer em climas semiáridos e depender de menos irrigação.

Na manhã de domingo (10), Lula e os outros chefes de Estado e de governo depositam flores no Raj Ghat, memorial que homenageia Mahatma Gandhi. Participa então da última sessão da cúpula e, na sequência, reúne-se bilateralmente com o presidente da França, Emmanuel Macron.

O encerramento terá uma cerimônia de transmissão simbólica da presidência do G20 da Índia para o Brasil, que assume oficialmente o comando do grupo em 1º de dezembro. Como antecipado pela Folha de S.Paulo de S.Paulo, Lula pretende convocar líderes mundiais reunidos no evento para uma força-tarefa global de combate à fome. No discurso, assim, deve pedir que os países-membros do bloco estabeleçam metas para combater a insegurança alimentar, que hoje afeta 780 milhões de pessoas.

Ainda nesse dia, Lula irá conceder entrevista coletiva e vai gravar o programa "Conversa com o presidente", que pode ser veiculado ao vivo.

Além de marcada pela falta de consenso, a cúpula do G20 deste ano ainda tem duas ausências notáveis: do dirigente chinês, Xi Jinping, e do presidente russo, Vladimir Putin. A Guerra da Ucrânia e as tensões entre China e Índia contaminaram todas as reuniões do foro multilateral.

No ano passado, a Rússia havia concordado, a contragosto, com a inclusão de menções à "agressão da russa contra a Ucrânia" na declaração conjunta da cúpula na Indonésia - mas depois recuou. Pequim, em mais uma manifestação de apoio a Moscou, afirma que o G20 é um foro essencialmente para tratar de economia, não de paz e segurança.

Muitos países em desenvolvimento, o Brasil inclusive, concordam que a visão chinesa. O chanceler russo, Serguei Lavrov, que representará Putin na reunião, disse à Reuters que seu país bloqueará qualquer declaração conjunta que não reflita as visões russas sobre o conflito.

Os sherpas, como são apelidados os principais negociadores de eventos multilaterais como a cúpula do G20, ficaram dias isolados em um hotel em uma cidade a duas horas de Déli para chegar a um consenso ainda longínquo.

Além das tensões com os russos, os negociadores chineses criticaram sistematicamente iniciativas indianas durante as negociações. O clima entre os dois países, que são vizinhos, voltaram a se acirrar em 2020, quando conflitos na fronteira no vale do Galwan, em Ladakh, causaram a morte de 20 soldados indianos. Eles ainda competem pelo controle do estado indiano de Arunachal Pradesh e a área de Aksai Chin - conflito que ganhou um novo capítulo na semana passada, depois que Pequim divulgou um mapa de seu território que inclui diversas áreas em disputa com outros países asiáticos.

O regime chinês anunciou na segunda-feira (4) que Xi seria representado na cúpula pelo premiê Li Qiang, mas não explicou o motivo. Xi participou de todas as cúpulas do G20 desde 2013, quando assumiu o leme da China. Em 2021, a participação foi virtual, devido à Covid-19. A ausência na cúpula em Nova Déli foi vista como um tratamento esnobe dado aos anfitriões indianos.

Indagado sobre a ausência da China e potenciais impactos, o sherpa indiano, Amitabh Kant, minimizou o problema. "A China é um ator multilateral engajado em discussões multilaterais, isso é muito diferente das questões bilaterais (entre China e Índia)", disse. Em relação aos obstáculos para obter um comunicado conjunto, Kant disse que a declaração "estava quase pronta".

(Patricia Campos Melo / Folhapress)