FABRÍCIO CARPINEJAR

Nunca é só um beijo

'Quando não é selinho, quando é consciente, transforma bruscamente existências'

Por Da Redação
Publicado em 27 de novembro de 2021 | 03:00
 
 
Hélvio

Uma mulher espalhou cartazes no bairro Palmeiras procurando homem que a beijou há dez anos. Colocou o seu esperançoso telefone para retorno. 

 “Ei você do Uno prata. Faz algum tempo que nos conhecemos nesta avenida. Por onde anda?” 

Pode parecer loucura depois de tanto tempo, e por ter sido apenas um beijo, mas não é. Um beijo nunca é só um beijo. Um beijo é a assinatura do corpo. Quando explode o tubo de ensaio, desequilibra, tonteia, vicia. 

Não a julgo como carente ou obcecada. Nem a vejo como vítima de uma alucinação ou idealização. Como poeta, eu a entendo e a perdoo. Um beijo pode ser inesquecível, capaz de represar a ampulheta dos anos. 

Quando não é selinho, quando é consciente, transforma bruscamente existências. 

Se Beatriz, minha esposa, tivesse sumido depois do nosso primeiro beijo, eu estaria colocando outdoor até hoje pelas ruas de Belo Horizonte. Estaria esperando, aflito, uma mensagem no celular, elaborando retratos sussurrados, falados, gritados pelas redes sociais. Teria feito acampamento onde nos encontramos, levantado uma força-tarefa com cães farejadores, consultado cartomantes e acendido velas na igreja. 

Porque não foi um beijo qualquer, mas um senhor beijo. Eu estava bebendo chope, e ela tomava uísque. Só que não sentimos o sabor das bebidas, sentimos puramente o teor alcoólico do nosso desejo. 

Dizem que na morte passa pela nossa cabeça um filme de tudo o que vivemos; no amor, ocorre um processo semelhante, só que com tudo o que podemos perder de viver sem aquela pessoa. Num insight, transcorreu o que seria a minha vida sem ela, e doeu, e não quis. Surgiu uma saudade do que significaria sua ausência. Uma saudade antecipada. Eu me imaginei sem ela e deixei de ser real. 

Ela não virou o rosto depois do beijo, envergonhada ou desiludida, não inventou distrações nem falou nada para mudar de assunto. Ficou me olhando, me encarando, pedindo mais. A reação se mostrou decisiva. Ela me enfrentava, me desafiava, não cedia espaço para pensar. 

Não havia como seguir indiferente, fingir que nossas línguas não se tocaram. Eu senti um aperto no coração. Uma pressa de caminhar numa rua sem saída. 

É como se eu tivesse sempre a beijado. Veio a pressão dos lábios com intimidade, com a suavidade do encaixe, lentamente, tal reencontro, tal reconciliação, apesar de nunca ter acontecido antes. 

O tumulto do bar se apagou ao nosso redor, só restava ela de paisagem. Mais ninguém. 

Não era um beijo que me chamava pelo nome, e sim pelo apelido. Um beijo cardíaco. Um beijo de volta de viagem, de remissão, de esperança. 

Era um beijo que eu mesmo me daria se eu me beijasse. Um beijo que me conhecia de cor, a ponto de respeitar a minha respiração. Ela não mordia, não lambia, não passava do ponto, não simulava, não blefava: um beijo sincero, um beijo perfeito. 

Eu não duvido que não tenha dobrado os meus pés, levitando por dentro. 

Acredito – e já afirmei isso – que o gosto do beijo não é o gosto da boca. O gosto do beijo é o gosto do amor.