Representatividade

Graduada pela PUC Minas, fez a pós-graduação “O jornalista Latino Americano como agente e líder social”, no Instituto Tecnológico e de Estudos Superiores de Monterrey, no México. Já atuou nas editorias de Economia, Política e Cidades, com passagem pelos jornais Hoje em Dia, Diário do Comércio, além de O Tempo e rádio Super Notícia. Integrante da lista dos 550 jornalistas mais premiados do Brasil, de acordo com o ranking “J&Cia dos Mais Premiados da Imprensa Brasileira”, de dezembro de 2019. Atualmente, é editora de Cidades, colunista responsável pela Coluna RepresentAtividade e integrante do Programa Interessa da Rádio Super.

Representatividade

Quantas Dandaras vamos matar?

Publicado em: Sex, 23/07/21 - 03h00

Eram 22h, e ela ainda estava no trabalho. Tinha muito o que fazer ainda no hotel que gerenciava, na Guaicurus, principal ponto de prostituição de Belo Horizonte. Em casa, dois filhos, gêmeos, de 2 anos, esperavam por ela. Aquele tinha sido um dia exaustivo para ela: mais cedo teve que expulsar de lá um homem que decidiu pagar R$ 150 a menos pelo programa de uma das meninas da casa. Normal, ele não foi o primeiro a se “engraçar” com a mulher, ex-prostituta, negra, de 41 anos. Ela sempre teve que lutar para conseguir ter direitos básicos respeitados. O que não era esperado é que aquele homem, depois de saciado sexualmente, a mataria a golpes de facadas. Essa mulher, eu preciso dizer, tem nome: Kelly Lopes Soares. E, não por acaso ou talvez por um acaso divino, ela era conhecida como Dandara. E, assim como a Dandara dos Palmares, que lutou no passado pela liberdade dos negros escravizados, também teve um fim trágico. 

A Dandara, que trabalhava na Guaicurus, sabia a dor de ser vista como não pertencente a uma sociedade que menospreza trabalhadoras do sexo e discrimina mulheres negras. A dos Palmares também era vista como alguém inferior em uma época em que pretos e pretas eram subalternizados pela escravidão. Ela também questionou os padrões e não aceitou ser escravizada.

Pegou em armas, liderou grupos de mulheres no maior quilombo do Brasil. Cerca de 20 mil negros fugidos na época do Brasil Colônia foram recebidos no refúgio. Quando ela foi pega, em fevereiro de 1694, se jogou de um precipício para não ter que se render à escravidão. Foi morta pelo racismo, enquanto sua xará, pelo machismo e também pelo preconceito que coloca mulheres negras na mira de armas historicamente no país. Mesmo assim, a história de nenhuma das duas estará nos livros didáticos dentro da grandiosidade que elas mereceriam.  

Dandara dos Palmares era esposa do líder Zumbi, com quem teve três filhos. A Dandara da Guaicurus, coincidentemente, também tinha três filhos: os pequenos que viviam com ela e uma de 22 anos, que mora no Rio de Janeiro. Cada uma dessas mulheres, ao seu modo, teve papel relevante. Uma, teve a força de enfrentar uma sociedade machista e viver a liberdade de fazer o que quiser com o próprio corpo. Claro que a necessidade de sobrevivência, provavelmente, foi o principal componente que levou a mais recente a se prostituir. Mas é uma direção que precisa de coragem para passar por todo tipo de violência, inclusive a morte, como aconteceu com ela. A outra é simplesmente um dos principais símbolos de resistência negra aqui no Brasil.

Mas não vamos romantizar a tragédia. As duas continuam sendo vítimas e, em um mundo ideal de igualdade, não teriam perdido as vidas da forma como perderam. Não foi dado a elas o direito de morrer de velhice, e essa sentença tem muita ligação com o fato de terem nascido mulheres negras. É por esse histórico de luta que em 25 de julho, no próximo domingo, se celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, data instituída em 1992. Uma data para lembrar que nós, mulheres pretas, somos vítimas de todo tipo de violência e para nos questionarmos sobre quantas Dandaras mais teremos que perder para o machismo e o racismo.

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